"Ah, vó, ainda quero pão amolecido com água, tomate, sal e vinagre!" |
Vila Ré é o
nome do bairro de subúrbio onde moro, na zona Leste paulistana. A
palavra Ré é o sobrenome dos fundadores do bairro. Em latim, quando o termo re é usado em poesia, significa rei. Quando usado em sentido comum quer dizer
coisa. República = coisa pública.
Quando eu era
menino, tinha trem de verdade, puxado pela Maria Fumaça. Ia gente no telhado e
em cima da lenha da locomotiva. Tempos livres aqueles. Viajava-se de janelas
abertas nos vagões de madeira e muitos iam no trem sem pagar. O preço da
passagem não aumentava nunca. Meu avô, um italiano nascido em Valelung, na Sicília, batalhador, um dia me
fez um carinho no vagão lotado. A barba dura me machucou o rosto.
Era tudo mato. Às cinco horas da tarde todo mundo se recolhia. Dava medo o escurecer sem ninguém.
Era tudo mato. Às cinco horas da tarde todo mundo se recolhia. Dava medo o escurecer sem ninguém.
"Tinha trem de verdade, puxado pela Maria Fumaça" |
O nome Vila Ré se consolidou mesmo devido à chácara de João Ré, um dos pioneiros. Ele era filho de Giácomo Ré, o primeiro a pôr os pés naquelas terras ainda sem ninguém.
Era 1895. Giácomo, que tinha um restaurante no Largo do Tesouro, em
São Paulo, comprou 90 hectares para engorda de gado entre a ferrovia da antiga
Central do Brasil e o córrego Tanquinho, no Burgo Paulista. Depois a área foi
dividida em chácaras e, mais para a frente, em lotes pequenos.
Ruas marcadas com
os nomes dos pioneiros foram a Balbina Ré, Augusto Ré, Laura Ré. Pioneiros
também foram Galileu Menon, José Cirillo, meu avô. Depois mudaram tudo sem consultarem o povo e rebatizaram as ruas com nomes que ninguém conhece.
Havia o
riozinho de águas transparentes cheias de lambari, onde meu pai me ensinou a
nadar. Ainda o vejo, de calção comprido mergulhando na pontinha, nas margens do
poção, onde era mais largo e mais fundo. As árvores precisavam de seis homens
para abraçar. O clima era de montanha.
A Vila Ré não
tem praças, nem jardins, nem árvores. Conhecem algum bairro assim? Mudaram também
o nome da rua Bijou, onde meu avô tinha a chácara. Agora é o nome de um árabe.
Pode ter sido um grande homem, mas não tem nada a ver com a história do bairro.
Na rua Itinguçu ficava o cine Saturno, que o vento levou... |
Não tenho fotos da chácara do meu avô. A única que guardo está na minha lembrança: a porteira com o coqueiro alto, a casa rústica, o caramanchão, o galinheiro no fundo e árvores balançando com o vento forte, goiaba, pera, pêssego, caqui, romã, maçã, uva, abacate.
E tinha minha
avó. Cozinhava no fogão à lenha, rodeada pela criação, galinhas, porcos,
cachorros, gatos.
"Posso pegar uma
pera, vó?" "Sim, filho, pode." Enrosquei-me naqueles galhos muito juntos e colhi, ainda
criança, para sempre, a pera e a mansidão da minha vó.
Meu avô era carregador
de malas do norte, ou seja, da estação do Norte, que é a atual Estação Roosevelt, no Brás.
Era ainda a Estrada de Ferro Central do Brasil. Meu avô era conhecido como o 26 , o leão do Norte, com sua
voz de trovão. Era também o número da chácara, rua Bijou, 26. O endereço da minha
infância.
Hoje a Vila Ré demole o seu passado... |
Em sonhos, hoje, colho grandes frutos maduros da chácara, que não me saciam. Lá está o caramanchão, sob a videira, o garrafão de vinho ao pé direito do meu avô nos ruidosos almoços com a parentada toda. O poço, com sarilho de ferro. O forno, no qual às vezes, no lugar do pão, tinha bichos e até cobras. Uma vez um vespeiro me perseguiu.
A casa, que foi vendida, ainda está lá. Conta minha mãe que eu ia cambaleando, gordinho, um ano e alguns meses de vida, pinto de fora, atravessava a rua de terra, enfiava pelo portão da chácara e subia no colo da minha avó. Ela ria e me dava pão amolecido com água, tomate, óleo, sal e vinagre.
Os enterros iam a pé até a Penha. A avenida
asfaltada de hoje, a rua Itinguçu, era de cascalho, com fileiras de árvores dos
lados. Cheguei a ver isso, na adolescência. Agora tem trânsito, oficinas,
lojas, motéis.
Sonho com o
meu riozinho de água fria no Burgo Paulista, o córrego Tanquinho, encostado à
Vila Ré. Chego na chácara no meu sonho e me atiro nos braços da minha avó. E
choro, um choro sentido, fundo, que vem do estômago. Ah, vó, ainda quero pão
amolecido com água, tomate, sal e vinagre!
...e assume o visual de modernidade. |
Minha avó foi levada morta pelo corredor da chácara, caixão roxo. Tzi Terê, velha amiga desde a Itália, choramingava: "Está orgulhosa, não é? Vai com Jesus, não é?". O assunto da minha avó era Jesus.
O colchão era
de palha e a gente fazia barulho se mexendo na cama. O armário tinha cheiro de
pão. Na mesa tosca, o despertador, o lampião e a Bíblia. Minha avó lia para mim
com pince nez. Noite após noite, a cavalaria do povo de Deus marchava por
aquela mesa. Os anjos tocavam trombeta em cima da fumaça do lampião, enquanto
os pecadores eram destruídos em meio a cenários de fim do mundo.
Eu sabia, eu
sabia, que aquele despertador barulhento estava marcando o tempo muito
depressa. Minha avó morreu, meu avô se foi depois, a chácara acabou loteada – todos precisam viver e morar – e eu deixei de
ser menino.
3 comentários:
Adorei seu post, muito emocionante sua história, Parabéns.
São linda suas lembranças, fiquei imaginando cada cena e lembrando da minha vó.
Anônimo,
infelizmente o Apollo morreu no último dia 31 de julho, aos 82 anos.
Desde então, o blog está republicando as melhores crônicas dele, sempre às terças-feiras.
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