sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

NA CORTE, A MASCARADA DOS QUE SE CREEM A SALVO DA RECESSÃO RUBRA. NO RESTO DO PAÍS, DESOLAÇÃO.

A MÁSCARA DA MORTE RUBRA
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Por Edgar Allan Poe
Durante muito tempo devastara a morte rubra aquele país. Jamais se vira peste tão fatal e tão terrível. O sangue era a sua encarnação e o seu sinete: a vermelhidão e o horror do sangue. Aparecia com agudas dores e súbitas vertigens, seguindo-se profusa sangueira pelos poros e a decomposição. Manchas escarlates no corpo e sobretudo no rosto da vítima eram o anátema da peste, que a privava do auxílio e da simpatia de seus semelhantes. E toda a erupção progresso e término da doença não duravam mais de meia hora.

Mas o príncipe Próspero era feliz, destemido e sagaz. Quando seus domínios se viram despovoados da metade de seus habitantes mandou chamar à sua presença um milheiro de amigos sadios e joviais dentre os cavalheiros e damas de sua corte, retirando-se com eles, em total reclusão, para uma de suas abadias fortificadas. 

Era um edifício vasto e magnífico, criação de príncipes de gosto excêntrico, embora majestoso. Cercava-o forte e elevada muralha com portas de ferro. Logo que entraram, os cortesãos trouxeram fornos e pesados martelos para rebitar os ferrolhos. Tinham resolvido não proporcionar meios de entrada ou saída aos súbitos impulsos de desespero dos de fora ou ao frenesi dos de dentro.

A abadia estava fartamente provida. Com tais precauções, podiam os cortesãos desafiar o contágio. Que o mundo exterior se arranjasse por si. Enquanto isso, de nada valia nele pensar, ou afligir por sua causa. Providenciara o príncipe para que não faltassem diversões. Havia jograis, improvisadores, bailarinos. músicos. Havia beleza e havia vinho.

Lá dentro, tudo isso e segurança. Lá fora a morte rubra

Foi quase ao término do quinto ou sexto mês de sua reclusão enquanto a peste raivava mais furiosamente lá fora, que o príncipe Próspero ofereceu a seus mil amigos um baile de máscaras da mais extraordinária magnificência.

Que voluptuosa cena a daquela mascarada! Uma multidão de sonhos deslizava para lá e para cá nas sete salas. E estes sonhos giravam de um canto para outro, tomando a cor das salas, e fazendo a música extravagante da orquestra parecer o eco de seus passos.

Mas logo soava o relógio de ébano que se erguia na parede de veludo. E então, durante um instante, tudo parava e tudo silenciava exceto a voz do relógio. Os sonhos paravam, como que gelados. Os ecos do carrilhão, porém, morriam - haviam durado apenas um instante -, e uma leve gargalhada, mal contida, acompanhava os ecos que morriam. E logo depois a música explodia, e os sonhos reviviam e rodopiavam mais alegremente do que dantes, tingiam da cor das janelas multicoloridas, através das quais se filtravam os luminosos raios das trípodes.

Mas então nenhum dos mascarados se aventurava até a sala que, entre as sete, mais ao ocidente se encontrava, porque a noite estava declinando e ali dimanava luz mais vermelha através das vidraças sanguíneas, e o negrume dos panejamentos tenebrosos apavorava. E, para aqueles cujos pés pisavam o tapete negro, do relógio de ébano ali perto provinha rumor abafado, mais solenemente enfático do que o que alcançava os ouvidos de quem se comprazia nas alegrias dos outros aposentos mais distantes.

Mas esses outros aposentos estavam densamente apinhados e palpitava febrilmente o coração da vida. E a folia continuou a rodopiar, até que afinal o relógio começou a soar a meia-noite. E, então a música parou, como já disse; e aquietaram-se as evoluções dos dançarinos; e, como dantes, houve uma perturbadora parada de tudo. Mas agora o carrilhão do relógio teria de bater doze pancadas. E por isso aconteceu talvez que maior número de pensamentos, e mais demoradamente, se inserisse nas meditações daqueles que, entre os que se divertiam, meditavam. 

E por isso talvez aconteceu também que, antes de silenciarem por completo os derradeiros ecos da última pancada, muitos foram os indivíduos, em meio a multidão, que puderam certificar-se da presença de um vulto mascarado que até então não havia chamado a atenção de ninguém, tendo-se espalhado, aos cochichos, a notícia dessa nova presença elevou-se imediatamente dentre a turba um burburinho ou murmúrio que exprimia desaprovação e surpresa a princípio e, terror, horror e náusea.

Numa assembléia de fantasmas, tal como a descrevi, bem se pode supor que tal agitação não podia ter sido causada por aparência vulgar. Na verdade, a licença carnavalesca da noite quase ilimitada; mas o vulto em questão excedia o próprio Herodes em extravagância e ia além dos limites indecisos de decência exigidos pelo próprio príncipe. Há no coração dos mais levianos fibras que não podem ser tocadas sem emoção. Mesmo para os mais divertidos, para quem a vida e a morte são idênticos brinquedos assuntos com os quais não se pode brincar. Todos os presentes de fato, pareciam agora sentir profundamente que nos trajes e atitudes do estranho não havia finura nem conveniência.

Era alto e lívido, e envolvia-se, da cabeça aos pés, em mortalhas tumulares. A máscara que ocultava o rosto era tão de modo a quase representar a fisionomia de um cadáver enrijecido que a observação acurada teria dificuldade em perceber o engano. E, contudo, tudo isso poderia tolerar-se, se não mesmo aprovar-se, pelos loucos foliões, não tivesse o mascarado ido ao de figurar o tipo da morte rubra

Seu traje estava salpicado de sangue, e a ampla testa, assim como toda a face, borrifada de rendas placas escarlates. Quando os olhos do príncipe Próspero caíram sobre aquela imagem espectral (que, em movimentos lentos e solenes, como se quisesse representar mais completamente seu papel, rodopiava aqui e ali entre os dançarmos), viram-no ser tomado de convulsões, a princípio um forte tremor de pânico ou repugnância, para logo depois enrubescer-se de raiva.

-Quem ousa -perguntou ele, roucamente, aos cortesãos que o cercavam-, quem ousa insultar-nos com tão blasfema pilhéria? Agarrem-no e desmascarem-no, para podermos conhecer quem teremos de enforcar, ao amanhecer, no alto das ameias! 

Ao pronunciar estas palavras achava-se o príncipe Próspero no salão dourado e azul, do lado do poente. Elas atravessaram todas as sete salas, alta e claramente, pois o príncipe era um homem ousado e robusto e a música havia silenciado a um gesto de sua mão. 

Era no salão azul que se achava o príncipe, tendo ao lado um grupo de cortesãos pálidos. Logo que ele falou, houve um leve movimento de investida por parte daquele grupo na direção do intruso que, no momento, se encontrava quase ao alcance da mão, em passadas firmes e decididas, mais se aproximava do príncipe. 

Mas em virtude de um indefinível terror que a todos os presentes causara o louco atrevimento do mascarado, não se achou que ousasse estender a mão para agarrá-lo. De modo que.sem empecilho, passou a uma jarda do príncipe, e, enquanto toda a assembléia, como movida por um só impulso, recuava do centro das salas para as paredes, seguiu ele seu caminho sem deter-se com os mesmos passos solenes e medidos que o haviam distinguido, do salão azul ao salão purpúreo, do púrpuro ao verde, do verde ao alaranjado, deste ao branco e até o roxo, sem que um movimento de decisão se fizesse para detê-lo.

Foi então, porém, que o príncipe Próspero, enlouquecido de vergonha de sua própria e momentânea covardia, correu precipitadamente através das seis salas, sem que ninguém o seguisse, pois um terror mortal de todos se apossara. Brandia um punhal desembainhado e se aproximara, com rápida impetuosidade, a poucos passos do vulto que se retirava, quando este último, tendo alcançado a extremidade do salão de veludo, voltou-se subitamente e arrostou seu perseguidor. 

Ouviu-se um grito agudo e o punhal caiu, cintilante sobre o negro tapete, onde, logo, instantaneamente, tombou mortalmente abatido o príncipe Próspero. Então, recorrendo a coragem selvagem do desespero, numerosos foliões lançaram-se sem demora no lúgubre aposento, e, agarrando o mascarado, cujo alto vulto permanecia ereto e imóvel dentro da sombra do relógio de
ébano, pararam, arfantes de indizível pavor, ao sentir que nenhuma forma tangível se encontrava sob a mortalha e por trás da mascara cadavérica, quando as seguraram com violenta rudeza.

E foi então que reconheceram estar ali presente a morte rubra. Ali penetrara, como um ladrão noturno. E um a um, foram todos os foliões, nos salões da orgia, orvalhados de sangue, morrendo na mesma posição desesperada de sua queda. E a vida do relógio de ébano se extinguiu com a do último dos foliões. E as chamas das trípodes expiraram. E o ilimitado poder da treva, da ruína, e da morte rubra dominou tudo.

Observações:
  1. nunca a Praça dos 3 Poderes pareceu tanto a corte do príncipe Próspero como ultimamente, com os cortesãos se refestelando dentro e nós, plebeus do Brasil inteiro, desesperando-nos fora. E o pior é que a recessão rubra vai nos assolar por muito tempo ainda. 
  2. para adequar o conto ao espírito da nossa época (e ao estilo deste blogue), tomei a liberdade de suprimir alguns trechos que são meras descrições de cenários. Espero que o fantasma de Poe não venha me assombrar à noite, apontando-me o dedo e dizendo "Nunca mais!"... 

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