Eulália Moreno, minha leitora nos longínquos tempos em que eu atuava em revistas de música, procurou-me pelo meu pseudônimo de então (André Mauro) e acabou chegando ao meu blogue.
Queria mais informações sobre uma edição dedicada à cantora Simone, em que o desfecho do texto principal (por mim redigido) foi, em sua opinião, "premonitório".
Quase trés décadas depois, ainda se lembrava dessas maltraçadas linhas e as queria reler. Com as indicações que forneci, acabou conseguindo um exemplar na editora.
Escaneou e me mandou tudo, capa, entrevista e considerações finais.
Foi com um misto de nostalgia e amargura que reli esse velho escrito, dando-me conta de que, já naquela época, tinha coisas diferentes para dizer, capazes de interessar às pessoas sensíveis.
Mas, tanto como agora, estavam bloqueados os caminhos que conduziam a públicos mais amplos, pois este tipo de reflexão crítica não convém ao sistema.
Eis a passagem que Eulália nunca esqueceu:
"Embriagada pelo sucesso, [Simone] chegou a prometer que se equipararia ao 'Rei', vendendo também 1 milhão de LP's. Com inteira razão, Caetano Veloso observou que se estava encarando um disco como uma caixa de sabão em pó. Simone não arredou pé de sua posição: 'Gente sou eu, o disco é um produto. Como o sabão em pó'.
"(...) Na verdade, essa simpática baiana é uma cantora razoável, ultimamente crescendo como intérprete, e que tem se beneficiado de um bom repertório, produções esmeradas e considerável estoque de truques promocionais. Acima de tudo, é uma pessoa comum, com a qual as pessoas comuns se identificam facilmente.
"Tem, portanto, as condições ideais para ser o médium em que o espírito da indústria cultural baixará por algumas temporadas. E, se não se acautelar, será usada e jogada fora, como tantos outros.
"Sua permanência depende da capacidade de imbuir-se do sentido maior da arte, instância intermediária entre o sonhado e o vivido, que carrega nossas paixões e esperanças, nossos gritos e êxtases, nossa dor e revolta.
"Artista é quem corre riscos, aventura-se pelos meandros do inconsciente, em busca de dávidas para repartir com seu público.
"Pode perder a lucidez, como Syd Barrett ou Arnaldo Dias Baptista. Pode perder a vida, como Janis Joplin [foto acima] ou Elis Regina. Mas deixa sua marca indelével no tempo, através de uma obra arrancada das profundezas do seu ser e que, por isso mesmo, abala, emociona e transforma as pessoas.
"Isso não é questão de técnica. E de nada adiantam os holofotes da indústria cultural, hoje apontados numa direção, amanhã noutra.
"É preciso, primeiro, se convencer de que a arte se constitui em finalidade última, vocação e sacerdócio, e não num meio para se conseguir acesso aos brinquedos da vida.
"E que o disco não é uma caixa de sabão em pó, pois deve conter o que de melhor o artista tem em si".
3 comentários:
Ola Celso. Realmente essa sua matéria é muito interessante. Quando me referi a sua conclusão como" premonitória" não foi no sentido da carreira da cantora Simone mas sim quase um "aviso à navegação" a todos aqueles que faziam( e/ou fazem)da arte, o seu ofício.
"É preciso, primeiro, se convencer de que a arte se constitui em finalidade última, vocação e sacerdócio, e não num meio para se conseguir acesso aos brinquedos da vida.E que o disco não é uma caixa de sabão em pó, pois deve conter o que de melhor o artista tem em si". Muito bem pensado , escrito e partilhado...28 anos atrás. Grande abraço , sua admiradora e agora leitora assídua
Eulalia
Esclarecimento registrado, Eulália.
Quanto à visão de arte, é bem a da minha geração. E encontrei no Youtube um vídeo que caiu como uma luva para a exemplificar.
Como já se disse, nunca ninguém cantou esses blues com tanta dor e emoção como a Janis Joplin.
Mesmo tendo de suportar o inferno pamonha, não estamos obrigados a encampar valores pamonhas, como o de comparar a arte às caixas de sabão em pó.
Yn abração!
Por onde anda a Simone? A Globo a exaltava de forma enjoativa até em seus programas dominicais. A gente não sabia se era uma jogadora de basquete em forma de cantora ou o contrário.
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