Para começar, uma pequena atualização deste post: a homenagem ao Raulzito incluía uma janelinha com o documentário Raul - o início, o fim e o meio, mas o gato comeu (quer dizer, foi retirado do ar no Youtube). Como prêmio de consolação, agora está na janelinha o áudio do LP a que se refere a entrevista.
Quanto à dita cuja, eu a fiz em 1980, para a revista Música. O Raul gostou tanto que ligou para a redação e me convidou para uma boca livre da gravadora CBS. Foi o início de minha fugaz amizade com o maluco beleza, com direito a papos filosóficos e etílicos.
E, em termos jornalísticos, tratou-se de um dos poucos textos que fiz macaqueando explicitamente a postura do Norman Mailer de se colocar como parte do evento retratado. Hoje me parece artificial essa referência a mim mesmo na 3ª pessoa, como "o repórter". Naquele tempo achei o máximo. Quem disse que a idade não traz sabedoria?
A alusão, no 2º parágrafo, a um "jornaleco colorido que pras gravadoras é uma canja" dificilmente será entendida atualmente. Trata-se do jornal Canja, uma picaretagem que não vingou. Era realmente uma publicação que só mostrava o lado positivo dos artistas, banindo até o mais remoto resquício de distanciamento crítico. Nem as gravadoras prestigiaram esta bajulação oportunista.
A Kika a que me refiro no texto foi a última amada (com direito a aliança no dedo...) do Raul e a musa por ele homenageada na canção "Ângela", uma das mais bem-sucedidas que conheço no tratamento poético do erotismo.
Mas, chega de papo furado e vamos ao artigo.
O repórter era o compromisso das onze e meia da matina na agenda do Raul Seixas; aliás, da agenda que fizeram para ele e que se encarregaria logo, logo, de rasgar e transformar em aviãozinho de papel...
[O Raul foi primeiramente num jornaleco colorido que pras gravadoras é uma canja: encarrega-se ele mesmo de fazer o press-release. Não tem críticos, portanto não tem opinião, portanto apenas ecoa o que as gravadoras querem passar sobre seus artistas e o que estes querem passar sobre si mesmos. Antes os house-organs: são de graça.]
E o Raul chegou ao meio-dia, muito discreto com sua jaqueta vermelha e seus óculos alaranjados. Ele, a Kika -- sua companheira -- e o Luís da CBS. O repórter tinha sido colocado numa brecha entre aquele matinal fornecimento de matéria-prima para divulgação (liquidação de primavera: duas páginas de entrevistas por uma de anúncio, quem vai nessa?) e um encontro mais sério, no Folhão, às duas da tarde. Sobrou o almoço. Mas, antes, um papo rápido, enquanto o fotógrafo trabalha.
Começamos. Por que o sarro com o presidente da WEA, André Midani ("André Ledani só faz confusão/ Sonhei com ele e mijei no colchão"), na faixa "Conversa Para Boi Dormir"?
"Bom, quando ele saiu da Philips e quis me levar junto, pensei que reconhecesse meu valor. Mas, não sei por que, a WEA praticamente nem divulgou meu penúltimo LP, Por Quem os Sinos Dobram. Você ouviu falar nele? Alguém ouviu? Daí, achei que era hora de levantar acampamento. E agora estou na Columbia Broadcasting System. Very good!" [Dá um sorriso moleque e aponta com o olhar um diretor da CBS.]
O Raul parece o tempo todo interessado nas peripécias do fotógrafo, que tenta achar o melhor ângulo. "O que é que há, Raul, está estranhando?" Ele: "Sei lá, vai ver que sou meio tímido. Fico sempre inibido". O repórter se espanta, tenta captar se ele estava falando sério. Estava.
NOSSOS COMERCIAIS, PLEASE!
"Desde o tempo de 'Ouro de Tolo' até hoje, continuo fazendo o mesmo trabalho, dentro das mutações da civilização, como observador, contador de histórias, gostador de música..."
Ou:
"Hoje é uma época caótica, não temos nada. Existiram duas décadas com ídolos saídos da terra, enraizados na terra -- a de Elvis e James Dean, depois a dos Beatles. E aconteceram todas aquelas mudanças de comportamento. Agora não há nada, não está acontecendo nada. Os anos 80 são isto: nada. Então, se no atacado a coisa dançou, a gente tenta salvar algo no varejo. O rock dos outros pode estar morto, mas o meu rock está vivo e com força total".
Além disso, há propostas, projetos: lançar seu atual LP, Abre-te Sésamo, não numa coletiva de imprensa, mas numa mesa-redonda sobre os anos 80, com a participação de Lula, D. Helder, Walter Clark e alguns jornalistas escolhidos a dedo ("Quero sentar-me e ficar ouvindo, para variar"); dar um show com sinfônica no Anhembi, marcando "my great come back"; gravar um LP nos EUA, chamado Opus 666, uma transa místico-poética em torno de uma visão atual do Diabo ("Depois esse disco chega como importado no Brasil e todo mundo compra. Santo de casa não faz milagre").
A ENTREVISTA DE VERDADE
Raul com sua última companheira, a Kika. |
"E todo jornal que eu leio/ Me diz que a gente já era,/ Que já não é mais primavera/ oh baby, a gente ainda nem começou".
Então, Raul sentiu-se entre amigos. E a conversa deixou de ser oficial. Para começar, ele fez aparecer, num passe de mágica, uma garrafinha metálica cheia de uísque. Despejou-a inteira em seu copo, tomou um longo gole e depois passou-o adiante. O proprietário (um chinês velhinho, de cabelos brancos) notou a garrafa trazida de fora, veio olhar: "Que engraçada, essa amostra..."
O Raul não deixou por menos, caricaturizou: "Essa não vai na conta, no?!". Mais tarde explicou que o velho estava tirando uma com a cara dele. "Se é para ser filho da p..., então eu vou ser o maior de todos!"
A Kika quis saber: "Como é, vocês não vão acabar a entrevista?". O repórter se espantou: "Ora, mas é agora que nós estamos fazendo a entrevista de verdade". O Raul completou: "E ai de nós quando acabarmos!".
Traçando um frango xadrez e bebendo muito saquê, o Raul começou a mostrar a mesma irreverência de suas músicas:
"Já que estão falando de abertura, então vamos ver até onde vai. Por isso eu fiz 'Abre-te Sésamo,' exatamente para questionar, porque o que está aí não é abertura nem nada. Depois, em 'Aluga-se', eu dou um bom conselho pro Delfim: se eu fosse ele, alugava o Brasil".
SERÁ QUE EU FALEI BOBAGEM?
Lá pelas tantas, o Raul colocou todo o resto de comida numa travessa só e nos convidou a comermos diretamente dali, como irmãos. O repórter ainda mandou ver umas garfadas, os outros já haviam encerrado. Os assuntos iam e vinham. A Kika falou de um germe recém-descoberto que comia ferrugem. O Raul aproveitou: "É, o bichinho come tudo que há de ruim nesta sociedade industrial -- o petróleo, a ferrugem, até os edifícios. Quando é que ele vai chegar no Figueiredo?" Aí, fingiu-se de assustado: "Será que eu falei bobagem, heim?".
Bota-fora. Raul chama um último saquê, o repórter lamenta: "O diabo vai ser passar o resto da tarde na redação, escrevendo". O Raul não quis ouvir: "Não fala isso, irmãozinho, não fala isso! Eu fico muito triste". O repórter novamente estranhou e quis ver se havia algum traço de ironia no rosto dele. Nenhum.
PODE NÃO CANTAR NADA, MAS QUE COXAS!
[E o repórter se dá conta que, ao contrário de quase todos os artistas que conheceu, Raul Seixas é sincero. Tanto nas suas esculhambações políticas como no clima sensual de suas músicas. No deboche bem humorado do 'Rock das Aranhas'. No conselho a uma baby de treze anos, de que se "quer deitar/ Não dar ouvido à razão, não/ Quem manda é o coração". Nos versos de sexo quase explícito de Ângela: "Rouba do meu leite agora/ O gosto da minha vitória" e também "Minha espada erguida para a guerra/ Com toda fúria que ela encerra". De forma alguma idéias tomadas de empréstimo a bons letristas como Paulo Coelho e Cláudio Roberto. Mas verdades, também para si. Principalmente para si.]
O Raul disse que estava há quatro noites sem dormir. Saiu bem atrasado para a Folha. Chegando lá, capotou. Desistiu de todas as entrevistas marcadas para a tarde. Foi para o hotel descansar.
* * *
O repórter só escreveria esta matéria alguns dias depois. Típico trabalhador da indústria cultural: salários aviltados, necessidade de fazer toneladas de matérias para sobreviver. Despersonalizando o estilo, prostituindo um dom.
No entanto, calou fundo nele a "teimosia braba do guerreiro", a imagem desse admirável guerreiro que insiste em manter a loucura dos anos 60 em meio ao marasmo e calculismo dos 80. E as sucessivas audições de Abre-te Sésamo lembraram-lhe tudo que a música era e ultimamente deixou de ser: alegria, revolta, paixão, coragem.
Então, o repórter resolveu, ao menos desta vez, fazer a matéria que tinha vontade de fazer, ao invés do texto bem comportado que as escolas ensinam e os editores recomendam. Saiu assim.
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