quinta-feira, 26 de agosto de 2010

"ESSE MAJOR MATAVA OS NOSSOS COMPANHEIROS COM UM TIRO NA NUCA"

Achei, no site da Fundação Perseu Abramo, um interessantíssimo depoimento  do ator Renato Consorte, que vale a pena reproduzir de imediato, deixando meus comentários para o final:
"Fui preso na rua, no dia do meu aniversário de casamento (31/1/69), por três tenentes do exército, sendo que, um deles, reconheci como participante das [infilitrado nas] nossas assembléias. Este, depois de me dar voz de prisão, me levou, dentro de um jipão com mais 10 soldados fortemente armados, para o quartel do REC-MEC no Ibirapuera. Chegando lá, fui entregue a a dois majores: um muito boçal que disse ter-me visto no teatro 'fazendo papel de gorila'. Isso tinha sido na peça de Plínio Marcos, 'Verde que te quero verde', em que eu fazia um gorila com uniforme do exército e censurava tudo quanto era texto, rasgando e riscando, isto sem falar em muitos outros detalhes incluídos com intuito de desmoralizar os censores da época. Esse major me martirizou muito, mentalmente, tentando me atemorizar.

"O outro major, de nome Beltrão, me tratou delicadamente, se dizendo meu admirador desde o tempo em que eu trabalhava no Rio, e fazia questão de me tratar por Senhor e acrescentava sempre: 'o senhor vê que eu o trato com educação'. Eu soube, depois, que esse major matava os nossos companheiros com um tiro na nuca. Naturalmente, antes de atirar ele devia pedir 'licença' ao sacrificado. Ele me perguntou, entre tantas coisas, o que eu achava do CCC. Me fazendo de ingênuo, eu disse que 'se tratava de um grupo de estrangeiros com o intuito de lançar brasileiros contra brasileiros'. Ao que ele observou, espantado: 'Não, senhor Roberto! Eles são daqui do nosso quartel mesmo!'. Aquele major boçal chegou a me dizer: 'O exército brasileiro, senhor Renato Consorte, está com o senhor por aqui'. E fez aquele gesto tocando na testa".
Lembro-me muito bem do narigudo Renato Consorte, que teve atuação das mais marcantes numa peça teatral seminal para mim, aos 17 anos: Arena Conta Tiradentes.

Só em 1968 eu a assisti três vezes, com o elenco completo: Gianfrancesco Guarnieri (à esq., na foto),  David José, Antonio Fagundes, Dina Sfat e Jairo Arco e Flexa, entre outros.

Na melhor delas, um chuvoso sábado à noite, havia pouco público e o elenco resolveu brincar um pouco com os personagens e situações, fazendo improvisos hilários e lançando insinuações transparentes sobre os acontecimentos políticos daquele momento. Inesquecível.

Eu nunca vira uma troupe fazer isso, praticamente sair da peça e voltar a ela, sem deixar a peteca cair em nenhum momento. [Depois o Oficina foi muitíssimo além, em Gracias, Senhor, outro dos grandes marcos teatrais da minha mocidade.]

Até hoje guardo as melhores lembranças de Arena Conta Tiradentes, tanto que já escrevi várias vezes sobre ela neste blogue: aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

Quanto ao Renato Consorte (à dir., na foto), era um intérprete cômico por excelência, que caiu como uma luva na anarquia criativa do Teatro de Arena (em cujas encenações os atores iam assumindo vários papéis ao longo da história, bastando trocar algumas peças da indumentária e as características da interpretação).

A fantasia de gorila, ele a utilizou na Feira Paulista de Opinião, uma coletânea de peças curtas de vários autores.

No depoimento acima não mencionou o que havia de mais debochado: o símio usava um penico na cabeça (representando, obviamente, o capacete militar).

A certa altura, colocava o penico no chão, sentava nele (ajeitando a cauda para o lado), fingia fazer suas necessidades, levantava, sacudia rapidamente o utensílio e o colocava de volta na cabeça.

O teatro vinha abaixo de tantas gargalhadas.

Foi porque não estavam conseguindo mais segurar a onda que os militares tiveram um chilique e promulgaram o AI-5.

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