segunda-feira, 12 de março de 2018

VEJA NO BLOG OS 2 FILMES BRASILEIROS MAIS EMBLEMÁTICOS DA ESTÉTICA INCANDESCENTE DE 1968

O dragão da maldade flagra a crise de consciência do jagunço...
Os dois filmes brasileiros mais afinados com os valores e a estética de 1968 foram O dragão da maldade contra o santo guerreiro e O bandido da luz vermelha: o desbunde tropicalista do cinema novo e o filme-manifesto do cinema marginal.

O ano que não terminou, segundo a feliz definição de Zuenir Ventura, impregna ambos do começo ao fim, pouco importando que o de Glauber Rocha tenha sido lançado já em 1969 e o de Rogério Sganzerla, no finzinho de 1968.

O Dragão da maldade está longe de ser, como ocorre com as franquias atuais, a mera repetição de uma fórmula que deu certo (Deus e o diabo na terra do sol) para faturar mais algum. Tem vida própria e é bem diferente do seu antecessor, até porque mudou muito o Brasil ao longo dos cinco anos que os separam.

Deus e o diabo estreou pouco depois do golpe de 1964, mas as filmagens ocorreram antes dele, daí ser, tipicamente, uma obra do cinema novo, o herdeiro brasileiro do neo-realismo italiano. Glauber, por sinal, já tendia para as sínteses ousadas, então incorporou também influências de Eisenstein, John Ford e Lima Barreto, além de aproveitar magnificamente a rica cultura popular nordestina.
...que matava cangaceiros e beatos a soldo dos latifundiários...
Dá uma visão do beatismo e do cangaço que é bem a da esquerda da época, exposta em livros como Cangaceiros e fanáticos, do Rui Facó, lançado exatamente em 1963: mostra-os como o primeiro (e embrionário) estágio da revolta contra a opressão e a exploração. 

O vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey  passa por um ciclo e pelo outro, inicialmente como discípulo do  Santo Sebastião  (ersatz de Antônio Conselheiro, interpretado por Lídio Silva) e depois do cangaceiro Corisco (Othon Bastos, magnífico!), até chegar ao entendimento de que a salvação do sofrido povo nordestino não virá de Deus nem do diabo, mas sim do homem que se torna senhor do seu destino –presumivelmente por meio da luta de libertação.

Antônio das Mortes (ersatz do major José Rufino) é um jagunço singular: elimina beatos e cangaceiros a soldo dos poderosos, mas acredita estar contribuindo para que o povo nordestino, "sem a cegueira de Deus e do diabo", trave a grande guerra que um dia terá de travar. É por isto que ele destrói o Monte Santo (ou seja, Canudos) e também mata Corisco.

O Dragão da maldade  mostra sua autocrítica na prática. Antônio (Maurício Do Valle) já pendurou o bacamarte e lembra com saudades dos tempos da valentia. Quando um velho conhecido, o delegado Mattos (Hugo Carvana) vem lhe informar que no Jardim das Piranhas há um tal Coirana  se apresentando como cangaceiro, ele fica surpreso, pois acreditava ter matado até o último deles.

Vai lá ver se é verdade e os traumáticos acontecimentos o levam a mudar de lado: após matar Coirana, acaba substituindo-o como protetor de um grupo de fugitivos da miséria, incluindo uma santa dos pobres e um negro que simboliza Zumbi dos Palmares.
...mas começa a perceber quem é o verdadeiro inimigo.

Finalmente, Antônio e um professor (Othon Bastos) que é ersatz do médico Che Guevara travam um duelo épico com o já decadente dragão da maldade (o coronel cego interpretado por Joffre Soares) e o bando de jagunços a seu serviço.

Ou seja, o filme aponta para a luta armada com que a esquerda sonhava em 1968, ano das filmagens. E tem todo um jeitão tropicalista, um verdadeiro delírio de cores, músicas e danças, impactante ao extremo. 

Quatro décadas depois, ainda é muito mais moderno do que toda essa tralha atual com estética televisiva, copiada das telenovelas da Globo.  


NA VIDA REAL ELE ERA REPULSIVO.
NO CINEMA, FASCINANTE.
A magia do cinema tudo consegue, até tornar interessantíssimo o filme sobre as peripécias de um personagem real tão desinteressante quanto João Acácio Pereira da Rocha, o bandido da luz vermelha.

Eis um pequeno resumo de sua carreira, que fui buscar no site da revista Mundo estranho (o autor é Danilo Cezar Cabral):
O banal/boçal João Acácio...

"Órfão de pai e mãe, João Acácio começou cedo no crime com pequenos furtos. Nasceu em Joinville, Santa Catarina, e ainda garoto fugiu dos cuidados de seu tio para morar na rua com seu irmão mais velho. Mudou-se para São Paulo no começo dos anos 60.

Agia sozinho e armado. Chegava a seus alvos de táxi ou de ônibus e preferia atacar casarões de alta classe. A invasão rolava na alta madrugada – entre 4 e 6 da manhã –, depois que o bandido cortava a energia do local

Para assaltar na escuridão, usava uma lanterna de luz avermelhada. Mas o bandido só ganhou o apelido de Luz Vermelha por causa de um assassino estadunidense que usava uma luz parecida com a de sirenes policiais na hora de matar as vítimas.

Agiu sem ser pego durante seis anos e foi capturado por um vacilo, ao deixar impressões digitais no vidro da janela de uma casa assaltada. Foi preso no dia 8 de agosto de 1967, no Paraná, e pegou uma pena de 351 anos de prisão.

Com seu jeitão excêntrico virou celebridade, vestindo-se como os Beatles e os cantores da Jovem Guarda. Torrava a grana dos assaltos com mulheres e boates, e até recebeu cartas de amor enquanto estava atrás das grades. 
...e sua versão glamourizada (Villaça).
Sob a cor do diabo (como o próprio João Acácio se referia ao vermelho), matou quatro pessoas e cometeu 77 assaltos. Apesar de nunca ter sido acusado oficialmente, existe a suspeita de que tenha estuprado mais de cem mulheres.

Em 1968, fizeram o filme célebre sobre sua vida. A sequência, intitulada Luz nas trevas – a revolta do bandido da luz vermelha, foi lançada em 2009, com Ney Matogrosso na pele de João Acácio, quando o bandido estava no xadrez.

Que fim levou? Desdentado e com distúrbios psiquiátricos, saiu da prisão em 1997, após 30 anos de reclusão. Quatro meses depois, em janeiro de 1998, foi morto numa briga em Joinville, sua cidade natal".

O filme O bandido da luz vermelha, dirigido por Rogério Sganzerla, foi o popularizador do cinema marginal, que era principalmente paulista, pobre em recursos mas rico em criatividade, transgressor da linguagem cinematográfica tradicional, mais chegado ao universo dos cabarés e tipos decadentes da zona do meretrício do centro velho de São Paulo. 

cinema novo, por sua vez, era predominantemente carioca, tinha como referências principais os trabalhadores e favelados, e recebera forte influência da nouvelle vague francesa (da qual foi, digamos, uma versão terceiro-mundista).

O rigor histórico nos manda considerar Ozualdo Candeias como o verdadeiro pai do cinema marginal, com seu belíssimo A margem, de 1967. Mas, tratou-se de uma obra tão pessoal e diferente de tudo que se fazia no Brasil, que não teve seguidores, enquanto o bandido de Sganzerla inspirou Júlio Bressane, Carlos Reichenbach, Andrea Tonacci, Neville D'Almeida, Emílio Fontana e muitos outros.

Quanto ao filme em si, foi uma curiosa transposição de O demônio das onze horas (d. Jean-Luc Godard, 1965) para o ambiente esculhambado da boca-do-lixo, com narração brega ao estilo dos programas policiais radiofônicos (Gil Gomes & cia.) e participação de artistas marcantes da era do rádio, como o humorista Pagano Sobrinho e o cantor Roberto Luna. 

Paulo Villaça consegue sustentar bem seu personagem, o qual, claro, tinha bem mais a ver com o Jean-Paul Belmondo do filme francês do que com o João Acácio da vida real.

E a frase mais marcante, citada ad nauseam fora das salas de exibição, era "o terceiro mundo vai explodir, quem 'tiver de sapato não sobra"...

Um comentário:

Valmir disse...

os brasileiros costumam se espantar quando descobrem que para o hinduísmo a vaca é sagrada. Mas não se espantam nem um pouco ao saber que para a seita majoritária em nosso país, os bandidos são sagrados.

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