Aos 73 anos, não mudo uma palavra no velho aforismo italiano La vecchiaia è na brutta bestia (a velhice é uma fera medonha).
Isto mesmo reconhecendo que a minha poderia ser muito pior do que está sendo. Problema potencialmente mais grave, só tive um tumor, descoberto logo no início e que, no momento considerado ideal pela oncologista, foi zerado por sessões de radiologia.
Mas, incomodam-me muito as pequenas limitações que vão surgindo, como estar levando umas quatro horas para redigir e editar um artigo que finalizava em três, ou os joelhos que se ressentem das longas caminhadas que sempre gostei de dar e agora estão pedindo próteses.
Conviveria melhor com minhas limitações se me conformasse com elas, mas tendo a excedê-las amiúde. Aos 17 anos decidi tornar-me um homem de ação e não de contemplação; tal opção moldou meu temperamento na vida adulta.
Doença nenhuma me impedia de comparecer às manifestações #ForaBolsonaro, mesmo conscientes de que só conseguiria nelas permanecer por cerca de uma hora. E não ia por superestimar a minha importância, mas sim porque me sentiria acabado se nem mesmo desse as caras.
São tantos os médicos me alertando que por enquanto o senhor não tem nada, mas daqui a alguns anos terá de operar catarata, glaucoma... ou raio que os parta, que fico me sentindo como um condenado à espera de uma inevitável sentença vindoura.
Sem nenhuma ilusão quanto ao fato de que minha existência não vai melhorar, mas sim piorar, com o passar dos anos, ainda assim tentarei prolongá-la o suficiente:
— para ajudar minhas duas filhas a estabilizarem-se na vida (suponho que uns dez anos mais bastarão); e,
— se calhar, ainda desempenhar o papel para o qual venho me preparando desde 1967, qual seja o de ajudar na ressurreição de uma esquerda realmente combativa, em substituição da que resolveu na década de 1980 tornar-se mera coadjuvante do capitalismo e não sua coveira.
Para tanto, vou até obrigar-me a levar a sério os cuidados preventivos dos quais fugi a vida inteira. Já estou morrendo de saudade da feijoada fumegante e gordurosa aos sábados e das horas que passava bebericando e jogando conversa fora com amigos, sem dar a mínima para a ressaca do dia seguinte.
E, como fiz na vida quase tudo que me propus a fazer (mesmo ciente de que as consequências poderiam ser muito duras, como algumas foram), aceito tranquilamente que as pessoas queridas tenham o mesmo ou até mais êxito do que eu na busca dos seus objetivos. Torço por elas e adoro acompanhar suas novas descobertas, realizações, processos de afirmação.
Só de ver minha filha mais velha apaixonada de verdade pela primeira vez, fico extasiado, lembrando de quando passei por idêntica situação e dediquei à minha musa uma poesia que um pau no computador depois destruiu, mas terminava assim: "Faço versos como preces,/ apostando no triunfo da beleza e do amor".
Mesmo não sendo devoto de nenhuma religião, a prece até que foi atendida, minha primogênita está aí para provar.
Assim como me emociona observar o David Coelho trilhando o caminho que sempre soube que trilharia, desde que, em 2018, me entusiasmei com seus textos nas discussões virtuais e o convidei para colaborar com este blog.
Se a esquerda brasileira estiver destinada a renascer das cinzas, como fez depois da derrota sem luta de 1964, aposto todas as minhas fichas em que ele será uma das novas caras que emergirão no processo.
Ao participar do comando da greve da Educação Federal, inclusive indo a Brasília para as tratativas, o David me fez lembrar tanto a batalha que lá travei por minha anistia, quanto as idas para acompanhar as várias sessões de julgamento do escritor Cesare Battisti no período 2008/2011.
Embora não me agradasse nem um pouco o jeitão da capital federal, que me parecia uma distopia futurista (Mundos fechados, de Robert Silverberg, 1936), acaba sendo gratificante lembrarmos de vitórias arrancadas com enorme sacrifício.
E me tocou também o David ter-me contado que está enfrentando uma sintomática aliança de pais conservadores/reacionários bolsonaristas com lulistas, contingentes amiúde flagrados em perfeita comunhão contra a esquerda combativa. O que faz todo sentido, pois, embora posem de inimigos ideológicos, têm nos interesses mesquinhos seu ponto de convergência, caçadores de rachadinhas e boquinhas que são.
É outra situação do meu passado evocada, a de quando liderei com três colegas uma inusitada paralisação do então Colégio Estadual MMDC, em junho de 1968. Foi numa sexta-feira à noite e teve fortes emoções:
— todos os alunos no pátio, atendendo à nossa convocação;
— alguém (nunca soubemos quem) sabotando a luz e deixando a escola às escuras;
— a chegada de policiais do Dops numa viatura do Juizado de Menores, como camuflagem;
— o professor de química Mário Hato discursando em nosso favor, trepado numa cadeira, quando um investigador chegou chutando a dita cuja para longe e atirando-o ao chão;
— o professor dedo-duro de português acompanhado por dois agentes, procurando-nos por todo o pátio, munidos de faroletes, sem perceberem que, ao avistarmos os fachos de luz, distanciávamo-nos calmamente por entre as rodinhas formadas;
— a abertura dos portões que eles haviam trancado e a saída em massa de nós todos, que demos de cara com um colega preso porque havia sido surpreendido esvaziando os pneus da viatura fake;
— a covardia de um agente que, apavorado com os gritos de Solta!, Solta!, se pôs a dar tiros para o alto, provocando o estouro da boiada (um colega tropeçou no momento de um disparo e ficamos acreditando que tinha sido baleado); e
— a ida imediata de nós quatro, os líderes, à redação da Folha da Tarde, para relatarmos tudo que ocorrera, daí resultando uma pequena notícia publicada no dia seguinte com o ótimo título de Dops invade escola atirando.
Na segunda-feira, os estudantes do noturno não ousavam entrar no MMDC por temerem prisões. Eu e o Eremias Delizoicov fomos negociar e eles só ingressaram no prédio depois de voltarmos para informá-los do compromisso assumido pela diretora no sentido de não haver prisões nem retaliações.
Participamos em seguida de uma reunião extraordinária da Associação de Pais e Mestres. Como a companheira Maria das Graças estava acamada com hepatite, coube-nos defender a paralisação.
Pais barrigudos e furibundos ensaiavam até agredir-nos, mas outros os seguravam. O Eremias os ironizava o tempo todo e eu fazia a defesa política, o que também os tirava do sério porque não conseguiam prevalecer contra um jovem de 17 anos na batalha dos argumentos.
Triste pensar que em outubro de 1969 o Eremias, um ano mais novo do que eu, morreria baleado 35 vezes por uma equipe da PE da Vila Militar (RJ). Estudáramos juntos, embora nem sempre na mesma classe, desde o primário.
Preso, conheci os quatro que o haviam executado quando poderiam facilmente tê-lo subjugado vivo; além de tudo incompetentes, agiram com tamanha bestialidade por confundirem-no com um ex-sargento que também integrava a Vanguarda Popular Revolucionária e era bem mais velho.
Tomara que a trajetória do David seja menos sofrida. Mas, quando tantos se omitem das lutas absolutamente necessárias, os que as assumem estão sempre sujeitos a carregaren uma carga mais pesada. É por isto que Brecht os chamava de imprescindíveis. (por Celso Lungaretti)
3 comentários:
A vida, amigo, é uma doença terminal.
Dessa você não se curará.
Companheiro, desde que eu tinha uns 16 anos a palavra escrita é minha companheira de jornada inseparável.
E desde que perdi meu último emprego fixo, aos 55 anos, percebi que só teria ânimo para continuar escrevendo se aproveitasse a nova condição, de poder dar o meu recado sem estar toureando obstáculos como a linha editorial determinada pelos meus empregadores, as censuras oficial e oficiosa, a intolerância da esquerda que trocou a revolução por nacos de poder dentro do capitalismo, etc.
O post acima expressa bem minha opção. Comecei a pensar na coincidência de o David estar sentando à mesa para bater boca com pais reaças e eu haver passado por idêntica saia justa em junho de 1968. Todo o resto foi o que me deu vontade de colocar, de estalo, antes de chegar ao ponto que me inspirou.
Mas, espero que ninguém pense que as agruras do envelhecimento me abatem. São reais e eu não as escondo (detesto os idosos que se iludem com besteirinhas tipo "melhor idade" e também os que preferem não ter mais compromissos com ideais e se consideram liberados para apenas dar tapinhas nas costas uns dos outros).
Continuo tendo gratificações, sonhos e pique para lutar por meus ideais. E pretendo continuar levando a vida com integridade e coragem até o fim dos meus dias. Não existe suicídio nem repouso do guerreiro para revolucionários.
Como cantou o Gilberto Gil dos bons tempos, "prefiro ter toda a vida/ a vida como inimiga,/ a ver na morte da vida/ minha sorte decidida".
Uma feijoada completa, ao menos uma vez por mês,
até que cai bem. Se puder, Não dispense!
Um abraço do Hebert e Parabéns pela Família.
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