terça-feira, 29 de janeiro de 2019

PORQUE NÃO DEVEMOS GOVERNAR, NEM ALMEJAR O PODER (final)

(continuação deste post)
h) o aumento da fome no mundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, de insuspeita vinculação com a ordem econômica mundial (menos para o Olavo de Carvalho, que em tudo vê infiltração comunista; e para o ministro da Economia Paulo Guedes, segundo quem o capitalismo cumpre o papel de redentor da humanidade), informa estar aumentando a fome no planeta.

Os dados da FAO dão conta de que o número de famélicos do mundo subiu de 815 milhões em 2016 para 821 milhões em 2017, devendo aumentar mais ainda para 2018. O Fundo Monetário Internacional prevê uma redução do PIB mundial para 2019, e isto significa ainda mais fome nas regiões pobres que predominam mundo afora.

Para os ricos sobram preocupações com a falência sistêmica que atinge os seus negócios, mas eles estão longe de sofrerem as agruras da fome; para um trabalhador que sofre as consequências do desemprego estrutural, o problema se restringe a um prato de comida que lhe adie a morte e dos seus filhos por mais um dia. 

Nos 20 países da América Latina existem cerca de 40 milhões de subalimentados, número equivalente à população inteira do Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Não é pouca coisa.

Segundo o último Relatório da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo da FAO, em 2107 uma em cada nove pessoas no planeta foi vítima da fome. Um absurdo se considerarmos todo o saber adquirido pela humanidade.

Apesar de o aumento da fome mundial ser geralmente atribuído a variações do clima e ocorrências naturais extremas como secas e enchentes causadas pela crise ecológica, não há como deixarmos de considerar que todos esses fenômenos contributivos para a fome têm uma causa comum: uma lógica de relação social insensível às necessidades de consumo humanas e que delas apenas faz uso utilitário para a satisfação do interesse do lucro, que chegou ao seu limite de capacidade de realização. 

A busca desesperada do lucro passou a ser criminosamente predatória. Cessado o interesse ou possibilidade de realização do lucro a lógica do capital abandona à própria sorte a produção de gêneros de primeira necessidade como os alimentos. Somente em regiões vocacionadas para a grande produção alimentar em escala é que o capital ainda atua na produção dessas mercadorias. 

Paradoxalmente, a desnutrição encontra um contraponto oposto num fenômeno que tem a mesma base: a obesidade crescente. Segundo a FAO, um em cada quatro habitantes da América Latina apresenta problemas de obesidade. 

Isto poderia dar a falsa impressão do aumento da capacidade de consumo alimentar, mas é justamente o contrário. As populações mais pobres estão condicionadas ao consumo de alimentos mais baratos que causam obesidade, como os derivados do trigo (que, por sua grande capacidade de produção, são mais baratos e acessíveis à aquisição). 

Além disto, os produtos industrializados com o uso de produtos químicos nocivos à saúde e de baixo teor de proteínas são os mais consumidos por custarem menos, o que acarreta doenças inseridas no fenômeno da obesidade infantil (principalmente) e adulta.

Até na questão alimentar se observa a interferência nefasta da irracionalidade de uma lógica de relação social que é insensível à vida humana. 
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i) o processo migratório mundial – em nenhum momento da existência humana houve um movimento migratório como o que ocorre atualmente.

Segundo a Organização das Nações Unidas, cerca de 258 milhões de pessoas (3,4% da população mundial) emigra dos seus países em busca de novos horizontes de vida. Só em 2018, mais de 3.300 pessoas morreram nas rotas migratórias do mar mediterrâneo.

Os migrantes são, em sua maioria, originários da África, da Ásia e da América Latina, dirigindo-se às mecas do capitalismo: União Europeia e os Estados Unidos, predominantemente, e também para alguns países ditos emergentes, como o Brasil).  

Disto podemos extrair algumas conclusões sobre o significado da ordem capitalista one world:
 não consegue promover um crescimento linear;
— os países pobres e periféricos não conseguem sobreviver com seus baixos padrões de produtividade de mercadorias;
— os países pobres não conseguem pagar os pesados juros de suas dívidas públicas e privadas;
— a miséria social instalada leva à instalação de governos despóticos militarizados e movimentos fundamentalistas religiosos de escravização dos fiéis, tornando insuportável a vida de grande parte da população;
— a intolerância de sua ordem econômica mundial ergue muros, barreiras e campos de concentração como forma de proteção das ilhas de prosperidade que já estão em processo de deterioração da qualidade de vida.

O mundo repete o que ocorre nas cidades cindidas em bairros ricos e cinturões de pobreza, separados por muralhas, cercas elétricas, guardas armados, sistemas de vídeos e outros sistemas de proteção que uns poucos utilizam para isolar-se da maioria, chocantes testemunhos da segregação social e seus efeitos deletérios de desumanidade e violência urbana.
Por que então, dar sustentação à ordem capitalista, que está a promover um retrocesso civilizatório bárbaro após percorrer um itinerário de sangue na sua mais recente história de implantação? 

Recentemente, 164 países assinaram um pacto mundial para a migração, num encontro ocorrido em Marrakesh, no norte da África, cujo objetivos formais foram, dentre outros:   
— minimizar os fatores adversos e os fatores estruturais que obrigam as pessoas a deixarem seus países de origem;
— assegurar que todos os migrantes tenham prova de identidade legal e documentação adequada;
— aumentar a disponibilidade e a flexibilidade dos caminhos para a migração regular;
— facilitar o recrutamento justo e ético, bem como criar condições que garantam um trabalho decente;
— abordar e reduzir vulnerabilidades na migração;
— salvar vidas e estabelecer esforços internacionais coordenados quando houver migrantes desaparecidos;
— reforçar a resposta transnacional ao contrabando de migrantes;
— usar a detenção de migração apenas como último recurso e buscar alternativas;
— capacitar os migrantes e as sociedades para a plena inclusão e coesão social;
— eliminar todas as formas de discriminação; 
—investir no desenvolvimento de competências; 
— promover uma transferência de remessas mais rápida, segura e mais barata, bem como a inclusão financeira dos migrantes;
— cooperar para facilitar o regresso e a readmissão seguros e dignos, bem como reintegração sustentável;
— fortalecer a cooperação internacional e as parcerias globais para garantir a segurança, ordenação e migração regular. 

Mas as boas intenções expressas no pacto migratório do qual o Brasil foi signatário esbarram (tal qual ocorre na questão ecológica) na obediência cega que desses países à lógica opressora e segregacionista do capitalismo. 

Não é por menos que os Estados Unidos se recusaram a assinar tal protocolo pactual e o novo governo brasileiro, por seu chanceler Ernesto Araújo, já se pronunciou sobre a não participação do Brasil no que ele considera como sendo um globalismo nocivo aos nossos interesses, negando a tradição brasileira de a todos proporcionar bom acolhimento. 

Assim concluímos essa série na qual afirmamos os porquês pelos quais não devemos governar e nem almejar o poder, justamente porque tanto o Estado como a ordem capitalista guiada pelo fetichismo da mercadoria num estágio de implosão de sua própria forma e conteúdo de relação social, representam, conjuntamente, o oposto daquilo que é necessário para promovermos a emancipação da humanidade.

Somente com a indignação e a ação consciente e majoritária da população mundial, num movimento que reconheça a necessidade inadiável de estabelecermos um novo modo de produção livre das amarras do fetichismo da mercadoria.  

Um modo de produção que seja equânime, ecologicamente sustentável e comodamente prazeroso (graças à participação de todos no processo produtivo social) é que vamos nos redimir da nossa irracionalidade e atingirmos o estágio superior das nossas existências. (por Dalton Rosado) 

A NOITE EM QUE O BRASIL SE F...

"Em que momento o Peru tinha se f...?", pergunta Mario Vargas Llosa na abertura de Conversa na Catedral. Talvez a indagação seja mais fácil de responder no caso brasileiro: foi em 25 de abril de 1984.

Era uma noite úmida e estávamos na Praça da Sé, esperando o País renascer. A Câmara Federal apreciava a Emenda Dante de Oliveira e um gigantesco placar fora erguido para permitir o acompanhamento voto a voto.

Antes, ouvimos discursos e mensagens augurando vitória. Depois, foi a derrota que se desenhou aos poucos, enquanto a garoa aumentava. Por fim, o longo caminho de volta para casa. Uns poucos exaltados e querendo briga, os outros cabisbaixos, sem ânimo para mais nada.

Fazia 11 dias que minha primeira filha nascera. Não lhe legaria o Brasil de meus sonhos. As músicas, as passeatas, as concentrações-monstro na Sé e no Anhangabaú, o amarelo que usávamos nas roupas para simbolizar a adesão às diretas-já... tudo em vão. Algumas centenas de deputados haviam permanecido alheias à vontade nacional.

Sairíamos da ditadura pela porta dos fundos, como parece ser nossa sina. Do descobrimento do que já se sabia existir à independência para inglês ver, todos os momentos solenes da nossa História têm um quê de farsa e bufonaria. Mas, por Deus, daquela vez quase todos fizeram sua parte!

No rescaldo da derrota entraram em cena os profissionais – conforme anunciou Tancredo Neves, aludindo a si próprio e a seus iguais. E, se poucos votos faltaram para o restabelecimento imediato das eleições diretas, muitos apareceram para ungir, por via indireta, o candidato da Aliança Democrática.

É claro que, no primeiro caso, os congressistas eram convidados a abrir mão de seu próprio cacife; e a segunda ocasião significava a hora das recompensas. Que foram prodigamente distribuídas.

Não entrarei no mérito do Governo Sarney e da lenta agonia que consome até hoje a democracia brasileira, como se o nascimento espúrio tivesse lançado uma sombra sobre o seu futuro. Mas, quero deixar registrada – mesmo que tanto tempo depois – minha indignação com o aborto de uma esperança.

São raros os momentos em que há real interesse da população em influir nos destinos do País. E, cada vez que se ensaia um tímido despertar, surgem profissionais para conduzirem os acontecimentos no sentido do eterno retorno.

Nossa elite é sui generis: incapaz de formular um projeto nacional e de se unir em torno dele, alcança invejável coesão quando se trata de resistir às pressões que vêm de baixo. De empresários a políticos, passando por sindicalistas e acadêmicos, todos têm em comum a obstinação em não deixar a peteca escapar-lhes das mãos.

Daí o desencanto e o niilismo que grassam entre nosso povo. Quem ouve a voz das ruas sabe que o cidadão comum não confia verdadeiramente em nenhuma força do espectro político. Nenhuma.

E isto se deve, dentre outros motivos, ao balde de água fria sempre atirado no ânimo da multidão, como a garoa a nos castigar naquela noite em que acompanhamos mais uma traição à promessa de um futuro altaneiro, e voltei para casa sem palavras de amor para minha mulher nem paciência para ninar a criancinha, pois trazia a certeza, e os eventos posteriores só viriam confirmá-lo, de que naquele momento o Brasil tinha se f...

O PROBLEMA CENTRAL DO BRASIL É UMA DEFORMIDADE CULTURAL, A INVENCÍVEL COMPLACÊNCIA COM TUDO E COM TODOS

clóvis rossi
UMA RUÍNA CHAMADA BRASIL
Esse extraordinário cronista das agruras do Brasil chamado Vinicius Torres Freire errou apenas no timing, quando escreveu na Folha de S. Paulo, neste domingo (27), que “faz cinco anos, a gente tem a impressão de que o Brasil está em ruína progressiva".

Cinco anos, nada, Vini. Não sei datar exatamente mas é evidente que faz muito mais tempo que cabe ao Brasil a pergunta que, recentemente (*), o Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa fez a respeito de seu país: “En qué momento se jodió Perú?” (vou traduzir jodió pudicamente por apodreceu).

Não são apenas as barragens que se rompem em Minas Gerais, os viadutos que cedem em São Paulo, a memória brasileira contida no Museu Nacional que pega fogo – os exemplos recentes que bateram no fígado do meu ídolo Vinicius.

Bem mais velho que ele, cansei de falar de outras degradações (outro sinônimo pudico para joderse).

Em março de 2018, para ficar no exemplo mais recente, escrevi:
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"Em apenas cinco palavras, Ágatha Arnaus deu a explicação definitiva para a degradação infernal que assola o Brasil faz séculos:

'A gente acaba se acostumando’, disse Ágatha, a viúva de Anderson Gomes, o motorista da vereadora Marielle Franco, cuja execução representa a descida do país ao penúltimo círculo do inferno (sim, sempre conseguimos cair mais, mesmo quando parece que chegamos ao fundo do poço).

A gente se acostumou a perder o direito constitucional de ir e vir, desde que ir a determinados lugares significava correr enorme risco de não poder vir de volta.

A gente se acostumou a que a vida no Brasil é uma roleta russa: a gente nunca sabe se e quando a bala vai estar na agulha e nos atingir.

A gente se acostumou a aceitar que o Estado perdesse o monopólio do uso da força para grupos criminosos.

A gente se acostumou a aceitar o nome milícias para o que são esquadrões da morte.

[A propósito, pode já ir se acostumando à louvação de tais esquadrões por cabeças coroadas, que até dão medalhas de honra a figuras desse nefando time].

A gente se acostumou ao apartheid social, origem de fundo de tantos males. Não só se acostumou: distraídos e/ou desonestos intelectualmente até festejaram a suposta queda da desigualdade nos anos do PT. 

A gente aceitou a fraude, até descobrir que a desigualdade não caiu: a porcentagem que cabe aos 10% mais ricos, já obscena antes do PT, subiu de 54% para 55% de 2001 a 2015 (período quase todo sob Lula/Dilma).

A gente se acostumou à degradação da escola pública nos últimos 50 anos, poucos mais, poucos menos. É consequência direta ou indireta do apartheid social. No meu tempo de estudante, todo ele transcorrido em escolas públicas, o acesso era para poucos, basicamente para a classe média, e o ensino era ótimo.

A partir do instante em que se massificou o acesso à educação, a gente se acostumou a achar que os pobres que a ela chegavam não precisavam de ensino de qualidade —e todos os testes educacionais globais acabam sempre colocando o Brasil em situação vexaminosa.

A gente se acostumou com uma saúde pública eternamente degradada e acabou aceitando, os que podiam, migrar para os planos de saúde privados, que tradicionalmente figuram entre os que mais reclamações provocam nos organismos de defesa do consumidor.

A gente se acostumou à corrupção. Todos os políticos presos ou sendo processados foram eleitos, por mais que inúmeros deles estivessem há anos sob suspeita".
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Volto de 2018 ao presente, para citar email recebido de um acadêmico de alta qualidade, o sociólogo Zander Navarro. 

Segundo ele, o problema central do Brasil “é uma deformidade cultural", caracterizada, diz Navarro, por uma “invencível complacência, em relação a tudo e com todos, ainda que suas manifestações variem de acordo com as classes sociais. Trata-se de uma construção histórica e, por isso, estrutural, talvez impossível de ser mudada. E, não sendo mudada, nos condena às trevas para sempre".

O diabo é que as trevas golpeiam cada vez com mais frequência e com mais virulência. E aí, vem o prefeito de Brumadinho, Avimar de Melo Barcelos, e exibe pela tevê uma cena explícita de rendição (outro nome para complacência). 
Diz aos repórteres que uma segunda barragem na cidade (ameaçada de rompimento até então) não poderia se romper, porque “a cidade não merecia tanto azar".

Pois é, o Brasil depende de Deus estar acordado 24 horas por dia ou de o capeta estar no comando.
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* o Llosa pode ter repetido esta pergunta recentemente, mas é antiga: trata-se da frase de abertura de Conversa na Catedral, sua obra-prima de meio século atrás. 

Aproveitando o ensejo, republicarei em seguida o artigo que escrevi em 1994 para o Jornal da Tarde (SP), quando a rejeição da emenda das diretas-já completava 10 anos, utilizando a mesmíssima citação. (Celso Lungaretti)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

A LIBERDADE DE CÁTEDRA SERVE TAMBÉM PARA PROTEGER A NAÇÃO DA IMBECILIDADE

paulo ghiraldelli jr.
A LEI ESTÁ DO NOSSO LADO: TEMOS O DIREITO
E O DEVER DE ENSINAR O MARXISMO.
O ministro da Educação do governo Bolsonaro é colombiano. Talvez não tenha tido tempo, nem interesse, em ler a Constituição do país em que vive, o Brasil. Nela há um item importante que parece que ele desconhece: "Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber". 

Todavia, duvido que o ministro da Educação não tenha imaginado isso a respeito da nossa Carta Magna, pois há algo bem parecido na Constituição da Colômbia. 

Desse modo, suas falas dizendo que o serviço do MEC é combater o "marxismo" ("cultural"?), tudo leva a crer, são inconstitucionais. 

Nós, professores, temos o direito de ensinar o marxismo e temos o dever de, em caso de sociologia, fazê-lo junto com o ensinamento de outros clássicos, especialmente Weber e Durkheim.

Mas temos o direito, também, de pautar nossas ações pelo marxismo –pois é um corpo de ideias que já pertence às análises mais diversas, e está incrustado em nossa prática cotidiana, inclusive das instituições.

Ninguém poderia se dizer bem formado por uma universidade saindo dela sem saber fazer uma análise social informada pela existência de classes sociais e de conflito de classes. Uma pessoa assim, ignorante de um marxismo básico, seria empregada onde? Uma pessoa assim estaria aquém das necessidades do mercado de trabalho. Imagine um médico que não sabe como surgiram os conceitos de classe, de luta de classes, de direita e esquerda.

Um médico assim talvez imaginasse que o nazismo fosse de esquerda! E quando alguém dissesse para ele que os pobres deveriam ser atendidos, ele gritaria no meio do corredor: "Isso é coisa que já ouvi na esquerda, é o Hitler!". Daí a outras imbecilidades haveria menos que um passo.
O guru de Vélez já foi até astrólogo careiro...

Já imaginou um executivo, um engenheiro ou um jornalista ignorantes quanto à ideia de uma sociedade sem Estado, nascida, entre outros, da cabeça de Marx? Tomariam o Estado como algo natural, como uma árvore. Não imaginariam utopias. Seriam tacanhos em suas tarefas empresariais e empregatícias!

Nossa Constituição não garante a liberdade de cátedra apenas para garantir a liberdade, mas também para proteger a nação da imbecilidade.

Entender a época em que vivemos é, hoje, uma necessidade não mais do verniz de classes abastadas. É entender o que se pode fazer no âmbito de uma vida burguesa, que é a nossa vida. 

Temos de entender a modernidade porque somos modernos e porque nossa própria sobrevivência é dependente desse nosso entendimento.

Os clássicos contemporâneos das ciências humanas nos colocam de modo apto a manter nosso mundo funcionando. A universidade é o lugar para o qual vamos para nos habilitar a melhor viver. Não vamos viver melhor se não pudermos compreender os clássicos. Marx está entre eles, como Platão ou Machado de Assis ou Newton ou a Bíblia.

É triste eu ter que escrever isso, o óbvio. É triste ver o Brasil tendo que ter gente como eu gritando pelo óbvio e tendo de invocar a lei (e o bom senso) contra as autoridades que não o conhecem. Jamais imaginei que um dia fôssemos chegar a isso! (por Paulo Ghiraldelli Jr., professor da ECA/USP e escritor)

SE NÃO FOSSE A ATUAÇÃO EXEMPLAR DO COAF, JÁ TERÍAMOS MILICIANOS FAZENDO CHURRASCO NO PALÁCIO DA ALVORADA...

celso rocha de barros
BOLSONARO E AS MILÍCIAS
A esta altura, é difícil não concluir que Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, seja enrolado com milícias. 

O jornal O Globo descobriu que, quando o escândalo dos depósitos suspeitos veio à luz, Queiroz se escondeu na comunidade do Rio das Pedras, berço das milícias cariocas, onde sua família operaria um negócio de transporte alternativo (atividade tipicamente controlada por milicianos). 

A jornalista Malu Gaspar, da revista piauí, apurou que Queiroz foi colega de batalhão de Adriano da Nóbrega, foragido da polícia e acusado de liderar a milícia Escritório do Crime, sob o comando de um coronel envolvido com a máfia dos caça-níqueis (outra atividade típica de milícia). 

A polícia e o Ministério Público cariocas suspeitam que o Escritório do Crime matou Marielle Franco, a da placa que os bolsonaristas volta e meia rasgam às gargalhadas. Adriano da Nóbrega é foragido da polícia.

E, antes que os bolsonaristas digam não acreditarem em polícia, Ministério Público ou imprensa que não entreviste Bolsonaro de joelhos, lembrem-se do que disse Flávio Bolsonaro, o zero-um: Fabrício Queiroz, segundo o filho do presidente da República, lhe indicou a mãe e a mulher de Adriano da Nóbrega para cargos de assessoria em seu gabinete. 

Repetindo: esta é a versão oficial, em que o único pecado da família presidencial foi amar demais o Queiroz.

A versão oficial confessa, portanto, o seguinte: o presidente da República emprestou R$ 40 mil para um enrolado com milícias cuja filha, Nathalia Queiroz, era funcionária-fantasma de seu gabinete. 

Sim, fantasma: Nathalia trabalhava como personal trainer no Rio de Janeiro enquanto seu ponto era assinado no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro. 

O empréstimo foi pago pelo enrolado com milícias por meio de um depósito na conta da primeira-dama.

Mesmo na versão oficial, é um PowerPoint do Dallagnol bem curto: três círculos, duas linhas, milícia-Queiroz-Bolsonaro.

Com base só na versão oficial, portanto, pode-se dizer, sem medo de errar: se o Coaf não houvesse feito seu trabalho, já teríamos milicianos fazendo churrasco no Palácio da Alvorada, brindando com os generais, escolhendo Moro para zagueiro do time na pelada.

Se essa é a versão oficial, imagine o que deve ser a versão verdadeira.

Temos algumas pistas. 

A família Bolsonaro já defendeu as milícias publicamente repetidas vezes. E conhecia muito bem Adriano da Nóbrega muito antes da suposta indicação de Queiroz. Jair Bolsonaro defendeu o sujeito no plenário da Câmara já em 2005.

Flávio Bolsonaro foi mais longe: já homenageou o suposto líder do Escritório do Crime na Assembleia Legislativa duas vezes, nas duas ocasiões elogiando-o com entusiasmo. Concedeu-lhe a Medalha Tiradentes, maior honraria oferecida pelo legislativo estadual fluminense. Na ocasião, Nóbrega estava preso por assassinato. Recebeu a medalha na cadeia.

Vamos ver se novas pistas aparecem. Mas o quadro já é bem feio. 
Foi uma ofensa à memória de Tiradentes

Enfim, Bolsonaro é o herdeiro ideológico da facção das Forças Armadas ligada aos torturadores, que não aceitou a abertura democrática e partiu para o crime: esquadrão da morte, garimpo, jogo do bicho. É a mesma linhagem que nos deu as milícias.

Essa herança agora ronda o Planalto. (por Celso Rocha de Barros)
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Toque do editor: sobre o envolvimento do clã Bolsonaro com as milícias do Rio Janeiro, recomendo também este artigo de Felipe Betim, publicado em novembro na edição brasileira do jornal El País.

domingo, 27 de janeiro de 2019

O INSTANTE É PROPÍCIO PARA REVERMOS O PREMONITÓRIO 'SOB O DOMÍNIO DO MEDO'

São tantos  os brasileiros que estão sob o domínio do medo nos dias atuais (afora os que não estão mais aqui, por já terem dado no pé...), que avaliei ser um momento bem oportuno para repostar o filme de Sam Peckinpah que recebeu tal título em nosso país.

Lançado em 1971, é uma obra das mais impactantes, dirigida com a maestria habitual por Peckinpah, o poeta da violência

Mas, se o enredo for tomado como uma parábola sobre o mundo moderno, a coisa pega. Houve quem o considerasse fascistoide, mesma prevenção que existiu contra outras duas fitas marcantes do período, Perseguidor implacável (d. Don Siegel, 1971) e Desejo de matar (d. Michael Winner, 1974).

As decisões dos personagens principais das três fitas fazem sentido à luz dos seus dramas específicos, mas parecem servir como pretexto para uma apologia da volta à lei das selvas. Cabe a cada espectador decidir se os encara como episódios isolados ou como receita genérica para a sociedade, na linha dos ignaros de hoje em dia.
Susan George estuprada: tensão vai num crescendo até explodir

Matemático estadunidense (Dustin Hoffman) vai com sua esposa (a sensual Susan George) para o vilarejo de origem dela na Inglaterra rural, onde espera escrever um livro em paz. Mas, os aldeãos tomam sua sofisticação por fraqueza e o provocam continuamente, até que ele explode e desencadeia uma espiral de violência.

O caldo entorna quando, após atropelá-lo sem o ferir gravemente,  socorre um deficiente mental (David Warner). Ignora, contudo, que um clã truculento está à caça do sujeito, pois acredita tratar-se de um pedófilo assassino. 

É quando o matemático se enche de brios e, como um castelão medieval, recusa-se a entregar aquele a quem acolheu. Mais: decide defender a sua fortaleza seguindo à risca o figurino da idade das trevas, ou seja, mostrando-se tão brutal quanto os sitiantes. 

Os menos simplistas viram o filme sob outro aspecto: o de que estaríamos regredindo à Idade Média, a ponto de sermos obrigados a trancar-nos em nossos edifícios seguros e condomínios fechados, enquanto a miséria grassa ao redor e os miseráveis nos acossam. 

Então, não se trataria de uma ode à barbárie, mas sim de um alerta contra ela, na forma de uma exacerbação dos horrores que a escalada da desigualdade estaria engendrando.
Forças desiguais: seis ferrabrases contra um matemático

Mas, existe um aspecto que me parece mais lincado com este momento: o de que mesmo um indivíduo franzino e pacífico pode, em determinadas circunstâncias, travar uma batalha pessoal contra ferrabrases e vencê-los. Isto, claro, desde que não fuja do desafio.

Pois, como ensinou o Geraldo Vandré dos bons tempos, "quem afrouxa na saída / ou se entrega na chegada / não perde nenhuma guerra / mas também não ganha nada".

Por último: fujam do remake de 2011, é um caça-niqueis irrelevante.

PORQUE NÃO DEVEMOS GOVERNAR, NEM ALMEJAR O PODER (6ª parte)

(continuação deste post)
g) a crise ecológica nas suas duas dimensões, a terrestre e a atmosférica por uma infeliz coincidência, eu já começava e escrever este capítulo quando chegaram as notícias sobre a impressionante ruptura da barragem mineralógica da empresa Vale S/A (ex-Cia. Vale do Rio Doce), em Brumadinho, MG, causando o assassinato de pelo menos 37 trabalhadores e populares, atingidos por mais esta tragédia anunciada.

Prevê-se que o total de óbitos ultrapassará a casa de 100 e é certo que os danos ambientais se prolongarão por muito tempo, até que a natureza restaure o status quo ante, corrigindo os estragos causados pela insensatez dos homens. 

Apenas três anos após outra tragédia do mesmo naipe, ocorrida em Mariana, MG (cidade de nascimento do meu pai, e que para mim é particularmente cara), ter vitimado 19 pessoas e arruinado a vida de milhares de outras, vemos se repetir esse fenômeno devastador.

Sob o primado da ganância capitalista, as tragédias ecológicas com custos humanos acentuados ocorrem sob as mais variadas formas.

O que dizer do lixo despejado nos oceanos, vitimando um sem-número de espécies marinhas?  

O que dizer da poluição da baía de Guanabara, a apodrecer a sua deslumbrante beleza? 

O que dizer da redução do rio Tietê (que corta a cidade de São Paulo, a maior metrópole brasileira) a um esgoto a céu aberto, como estivesse a testemunhar a irracionalidade de um modo de relação social suicida? 

O que dizer do desmatamento irracional da Amazônia, com todas as consequências climáticas para o Brasil e o mundo?

O que dizer da suicida continuidade da emissão de gás carbônico pela queima de combustível fóssil em milhões de veículos, quando possuímos tecnologias suficientemente desenvolvidas para a produção de energias limpas que poderiam servir-lhe de alternativa?

O que dizer dos lixões a céu aberto na quase totalidade das metrópoles brasileiras, danificando o lençol freático e expondo a miséria social dos catadores que disputam com os urubus as suas sobrevivências?

O que dizer do uso de agrotóxicos nos alimentos, priorizando uma maior produtividade e ignorando o câncer que pode provocar nos organismos dos consumidores? 
Seriam milhares os exemplos de agressões ecológicas a serem citados. Enquanto isto, elegemos um presidente que claramente minimiza as agressões ambientais em favor do liberalismo econômico de mercado (sua afirmação de que o Ibama multa demais, perseguindo produtores, foi emblemática neste sentido).  

O que está na base desse comportamento irracional é a obediência cega ao fetichismo da mercadoria. Tornamo-nos reféns de uma lógica de relação social predatória que, atingido o seu limite de expansão em razão das próprias contradições internas que apontam para a necessidade de sua superação, ao invés de refletir conscientemente sobre a sua própria natureza, prefere negá-la como Calibã ao reconhecer sua imagem no espelho.

Será que esse quadro dantesco da crise ecológica é culpa do pensamento anticapitalista e dos movimentos que defendem a convivência harmoniosa com as diferenças de gênero, de opções sexuais e comportamentais?
Que a culpa é da falta de patriotismo? 

Que a culpa é dos comunistas comedores de criancinhas, que querem substituir a cor da bandeira brasileira? 

Chega de burrice, hipocrisia e insensatez! 

O que acontece com todas as tragédias ecológicas brasileiras e mundiais é que o capital, à medida que mais e mais se acentua a impossibilidade da sua reprodução aumentada (no seu caso, um imperativo de sobrevivência), não hesita em lançar mão de todos e quaisquer mecanismos de redução de custos de produção, ainda que causando a morte de seres humanos.

Esse é o leitmotiv do comportamento abominável das mineradoras que provocaram os dois últimos acidentes ecológicos devastadores.  

As discussões midiáticas sobre medidas legais cíveis e criminais,   bem como sobre providências administrativas e possíveis iniciativas políticas, são insubsistentes e fora de foco, justamente por não terem (nem poderem ter, em função dos compromissos das autoridades com o capital, grande vilão da história) a possibilidade de colocar o dedo na ferida.

A correta manutenção de barragens, quer estejam em atividade ou desativadas, representa prejuízos ou redução de lucros das empresas mineradoras, cujo objetivo primordial não é produzir mercadorias para a satisfação de necessidades de consumo, mas apenas utilizar tais necessidades para a realização dos seus lucros. 

Tanto faz produzir remédios que salvam, como produzir bombas que matam, o objetivo é o mesmo: a vital reprodução aumentada do capital pela extração de mais-valia e do lucro.

As pesadas despesas em dinheiro (valor) de manutenção das barragens equivalem a prejuízos, dentro da lógica capitalista. Para tal lógica reificada, abstrata, meramente numérica, vidas humanas são nada e o lucro é tudo.           

Por último vem a crise do aquecimento global provocada pela emissão de gases que provocam o efeito-estufa, impedindo que os raios solares refletidos desde a superfície da terra se espalhem na amplidão do universo. 

Essa constatação é científica, pouco importando os questionamentos (decorrentes da ignorância ou da ganância) de palpiteiros de direita ou de esquerda que ora estejam no poder político, igualmente submissos à lógica destrutiva e autodestrutiva do capital.

O aumento da temperatura planetária tem causado variações climáticas que promovem:
  • desertificação;
  • aumento do nível do mar ameaçando populações à beira-mar e de ilhas; 
  • problemas como o aumento da fome no mundo;
  • incêndios e invernos anormalmente rigorosos;
  • morte de corais; calor insuportável, 
  • e tantos outros transtornos para a vida animal e vegetal.   
Por trás de tudo isso está uma lógica insana e insensível à vida. 

O capital, embute por trás do brilho feérico das grandes metrópoles e da opulência dos reduzidos segmentos bem aquinhoados da população, uma compulsão macabra para a morte. 

O capital é assassino, e a crise ecológica é a resultante não seletiva de sua ação destrutiva. Que o digam as vítimas da catástrofe de Brumadinho, a quem transmito meus sentimentos de profundo pesar. (por Dalton Rosado) 
(continua neste post)
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