sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

A ESQUERDA ZUMBI E SEUS MANIFESTOS

Por David Emanuel Coelho
Em 1990, o marxista brasileiro José Chasin vaticinava a morte da esquerda. Apontava a falência de sua teoria e de sua prática. Para ele, no entanto, ainda restava uma certa esquerda burguesa, isto é, circunscrita aos limites do regime capitalista, não revolucionária, mas ansiosa por imprimir mudanças na estrutura social do capitalismo.  Chasin não viveu o suficiente para ver a morte até mesmo desta esquerda. 

Estamos numa época em que não parece ser espantoso mortos voltarem à vida. Porém, para infortúnio destes, costumam voltar na forma de zumbis: criaturas nem vivas, nem mortas. Ademais, conforme George Romero ensinou no filme que reergueu o gênero em 1968, A Noite dos Mortos-Vivos, o perigo maior não é o apocalipse zumbi, mas o que vem depois dele. 

Lembrei-me disto ao ler o Manifesto para reconstruir o Brasil, documento lançado recentemente por fundações de quatro partidos brasileiros, autointitulados de esquerda

Para resumir o mote geral do manifesto, poderíamos dizer que seus signatários defendem uma espécie de capitalismo nacionalista, pressupondo uma burguesia nacional trabalhando conjugadamente com a classe trabalhadora brasileira em prol do desenvolvimento do país. Deste modo, dizem, seria possível, ao mesmo tempo, diminuir as desigualdades sociais e fazer o Brasil crescer. Ou melhor, falando no jargão pomposo do manifesto, as desigualdades sociais seriam diminuídas através do crescimento da economia nacional. Praticamente um projeto nacional-desenvolvimentista recauchutado.
O filme de 1968 do Romero é mais moderno do que o tal manifesto...

Ao que parece, os signatários do manifesto ignoram a história e a dinâmica do capitalismo. Desconhecem o fracasso histórico da política de conciliação de classes enquanto mecanismo de emancipação dos trabalhadores. 

O Brasil nunca chegou a desenvolver-se de modo autônomo e nunca o fez porque sua burguesia jamais aspirou a ser mais do que sócia minoritária das burguesias centrais. Isto perdurou durante todo o período em que uma transformação verdadeiramente nacional poderia ser possível e foi solidificado após o último processo de globalização, iniciado na década de 90 do século passado. 

Após tal globalização, os mercados se unificaram ao redor do mundo, barreiras protecionistas foram derrubadas e o capital passou a se mover livremente, indo onde seria mais vantajoso para ele. 

Neste quadro ocorre a desindustrialização brasileira, conjugada a uma financeirização generalizada e a um recuo da economia sobre bases primárias. 

É preciso levar em conta que a industrialização brasileira foi um processo feito pelo capital internacional, não pelo capital nativo. Isto vale não apenas para a industrialização do pós-guerra, operada diretamente por empresas multinacionais, mas também para a industrialização da era Vargas, a qual ocorreu com financiamento externo – estadunidense e alemão.
Não só a industrialização dos Anos JK...

Ocorre que o capitalismo internacional migrou sua base industrial do Brasil para outros países onde a produção poderia se consolidar de modo mais barato. Em troca, transformou o Brasil em produtor das commodities usadas pelas indústrias e em barriga de aluguel do sistema financeiro internacional, gerando riqueza abstrata mediante o pagamento de altas taxas de juros. 

Os geniais signatários do manifesto defendem que seria necessário romper com a lógica financeira em prol da lógica produtiva. Porém, não percebem que não há contradição entre estes dois âmbitos. Eles apenas foram redivididos pelo capitalismo internacional. 

Para perceber isto, seria necessário analisar a dinâmica do capitalismo enquanto um sistema mundialmente interligado e não enquanto uma série de sistemas nacionais em competição, como fazem os signatários do manifesto. 

Não atentam também para o fato de justamente a financeirização ter sido a responsável pela relativa melhora do quadro social da população brasileira, pois propiciou o acesso de largos contingentes populacionais a bens de consumo mediante o crédito abundante. Bens de consumo largamente fabricados fora do país, nos lugares para onde as indústrias foram movidas pelo capitalismo internacional.
...como também a da Era Vargas teve financiamento externo.

O quadro de pobreza do povo brasileiro, porém, não se modificou. Houve apenas um golpe de vista, resultado do brilho permitido pelo acesso aos bens de consumo. 

A solução para mudar o estado de pobreza, dizem os signatários, seria promover uma distribuição da riqueza mediante coparticipação do Estado. 

Ora, conforme Marx já ensinava, a distribuição de riqueza está diretamente relacionada à participação produtiva. Como seria possível, portanto, distribuir riqueza sem tocar na questão da propriedade privada dos meios de produção? E como tocar nesta questão sem levar em conta a dinâmica mundial do capitalismo?

Tal esquerda zumbificada parece acreditar piamente na possibilidade de domar o capital e fazê-lo criar por mágica o que não se pode fazer por meios realistas. É assim que deposita sua fé na ação, ao mesmo tempo, construtiva e reguladora do Estado, como se tal entidade não fosse profundamente ligada ao próprio capital, funcionando em prol de seus interesses e não em prol de um suposto interesse geral. 

A existência do Estado é fundamentalmente para garantir a propriedade privada, do ponto de vista jurídico; e a reprodução continuada do capital, do ponto de vista econômico. Sua relação com os trabalhadores é, antes de tudo, coercitiva. Se ele concede benefícios, o faz apenas no interesse da pacificação social e sempre de modo temporário. Permanente, para ele, é apenas o lucro privado. 
A própria democracia, elevada a totem no manifesto, é limitada, pois não consegue ser exercida no terreno interno da propriedade privada. Ali reina, perdoem-me o trocadilho, a ditadura do proprietariado

Na verdade, a tão idolatrada democracia nada mais é do que as várias frações da burguesia em disputa, se orientando na via política para resolver suas disputas. Com a monopolização da economia, no entanto, a via política tende a se tornar cada vez mais restrita, com sistemas representativos que pouquíssimo divergem entre si, altamente cooptadas pelo grande capital. 

Daí ser profundamente ingênuo acreditar no Estado enquanto condutor de transformação. Num momento que as instituições políticas foram liquidificadas pelo poder titânico do capitalismo monopolista internacional, acreditar numa transformação pelo sistema institucional é como acreditar que um leão abandonará seu instinto carnívoro se orarmos muito. 
Rasteira do capital: Fiesp apoiando a derrubada de Dilma

O mais espantoso é perceber que tal proposta vem justamente após uma rasteira dada pelo capital a esta mesma esquerda. Afinal, não foram eles expulsos do condomínio do poder em 2016 justamente quando acreditavam que a burguesia nacional teria encampado o desenvolvimentismo?

Porém, incapazes de digerir o que aconteceu, preferem acreditar numa fábula: teriam sido vítimas de um golpe perpetrado pelo judiciário e por setores da elite, articulados pelo imperialismo invejoso dos avanços nacionais. Neste quadro, claro, a burguesia brasileira também seria vítima. 

Na verdade, tal esquerda é incapaz de visualizar a estrutura fundamental do regime capitalista, particularmente o brasileiro; e é incapaz porque se mantém nos limites burgueses. Se visualizasse, el teria de se tornar revolucionária, mas a revolução é algo que abomina. Para ela, fora do capitalismo existe apenas utopia desvairada. Só lhe resta, então, aplanar as cruezas de uma sociedade desumana. 

Aí reside toda sua tragédia, pois o único caminho para seus objetivos é contar com o apoio de uma burguesia nacional, coisa inexistente, pois não há contradição entre o capitalismo nacional e o internacional (ambos operam de forma articulada). Nossa burguesia participa como sócia, embora minoritária, de um grande grupo mundial de investimentos e sair deste negócio seria o mesmo que se suicidar enquanto classe.
Esquerda zumbi acompanha a música do capital internacional

O que resta, então, à esquerda zumbi? Repetir ideias que pairam no ar e, uma vez no poder, seguir exatamente o ritmo da música tocada pelo capital internacional. 

Assim, o desenvolvimentismo – que já teve seus dias de possibilidade real nos idos de 60 – torna-se, nos manifestos de saudosos do poder, um cadáver insepulto. 

Uma verdadeira posição de esquerda, no entanto, ainda espera para renascer, não enquanto um zumbi, mas enquanto uma espécie de Lázaro retornando à vida plena. 

Um comentário:

Vitorio Malatesta disse...

Brilhante! Uma das mais esclarecedoras análises que li neste ano sobre o momento político que ora vivemos. Salvei o artigo no meu arquivo "Análises Perenes".

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