sábado, 21 de outubro de 2017

AQUELA NOITE EM 67 COMPLETA 50 ANOS NESTE SÁBADO: SAIBA E VEJA COMO FOI O 3º FESTIVAL DE MPB DA RECORD.

Este sábado (21) marca o cinquentenário da finalíssima de um dos grandes festivais de música brasileira da década de 1967, não exatamente o mais importante de todos, mas aquele que as novas gerações podem conhecer melhor, graças ao bom documentário Uma noite em 67, que pode ser assistido, quase completo, na janelinha abaixo.

Não que falte qualquer trecho do filme de Renato Terra e Ricardo Calil; os 85 minutos e 5 segundos estão todos aí. Mas, tanto o filme quanto uma gravação do dito festival que a TV Record restaurou e exibiu no final da década passada têm uma lacuna imperdoável: não aparece uma das 12 finalistas, "De como um homem perdeu seu cavalo e continuou andando" (também chamada de "Ventania"), do Geraldo Vandré. 

Isto também serve para os jovens perceberem como eram nossos anos de chumbo. Nunca tínhamos certeza de que o filme visto num dia não sumiria de todas as salas, cinematecas inclusas, no dia seguinte; ou que certas músicas subitamente deixassem de ser encontradas nas lojas e passassem a ser disputadas a peso de ouro nos sebos, cujos proprietários as retiravam das prateleiras e tomavam o cuidado de não alardearem sua posse, só oferecendo-as os clientes mais confiáveis.  
O documentário mostra todas as finalistas do Festival da Record de 67...

3º Festival da Música Popular Brasileira se iniciou exatamente no mês em que os estudantes desafiavam os dispositivos policiais e voltavam às ruas, nas famosas  setembradas  de 1967.

A partir daí o movimento de massas iria se intensificar e radicalizar até a promulgação do AI-5.

O certame da Record foi marcado por um dos episódios mais deprimentes de toda a história dos festivais: o público pespegou monumental vaia numa composição que abordava com muita propriedade o fenômeno futebol.

Sérgio Ricardo, compositor idealista e talentoso, autor de clássicos como "Zelão" e "Esse mundo é meu", além de haver dado magnífica contribuição musical para duas obras-primas de Glauber Rocha (Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe), cansou de tentar interpretar sua "Beto bom de bola". Que não era nem de longe alienada, tratando-se, isto sim, de uma veemente denúncia da engrenagem esportiva que triturava ingênuos como Garrincha.
...menos uma, a do Vandré, cujo sumiço foi pra lá de suspeito!
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Afinal, o artista explodiu: "Vocês são uns animais!". E, arrebentando seu violão, atirou-o contra os espectadores. [A manchete jocosa de um jornal sensacionalista foi "Violada no palco"...]

O festival da Record de 1967 trouxe à tona, ainda, uma aguda cisão no front da música popular:
  • de um lado os defensores dos ritmos genuinamente brasileiros e das canções engajadas às lutas sociais; e
  • do outro, os adeptos do chamado som universal, da liberdade temática e das experiências formais.
Em teoria, a posição dos tropicalistas era inatacável: as raízes culturais só se mantêm vivas e puras em comunidades fechadas, não no Brasil de 1967, com sua economia integrada ao bloco ocidental e as informações chegando de todos os lados.
Músicos protestam contra as guitarras elétricas dos colegas

Na prática, entretanto, a contestação ao autoritarismo das lideranças políticas foi, para muitos, um pretexto conveniente para delas se afastarem, servindo-lhes, portanto, como justificativa para se omitirem durante um período crítico da vida brasileira.


A derrota, sabemos hoje, custou-nos seis anos de trevas absolutas. Mas, seria um exagero imputá-la apenas aos jovens que se desgarraram do rebanho ao verem o lobo se aproximando...

O próprio tropicalismo foi, por sinal, contraditório, ora pregando a revolta jovem ("É proibido proibir") e fazendo a apologia da guerrilha ("Soy loco por ti, América", "Questão de Ordem"), ora se embasbacando com as vitrines e outros signos da sociedade de consumo.

Em tempos normais, seria uma mistura de Semana de 1922 com psicodelismo à Beatles.

Em meio ao transe brasileiro, assumiu posturas às vezes mais radicais que a daqueles (os puros) que faziam passeatas contra as guitarras elétricas.

E, no final, acabaram todos vítimas dos mesmos algozes, frequentando as mesmas prisões e amargando o mesmo exílio.
Caetano Veloso foi quem trouxe a canção mais inovadora
A canção-manifesto do tropicalismo foi "Alegria, alegria", de Caetano, que ele interpretou acompanhado pelos Beat Boys, conjunto de iê-iê-iê cujos integrantes ostentavam enormes e desgrenhadas cabeleiras.

[Um deles era o guitarrista e cantor Tony Osanah, que parecia não saber exatamente em qual América se encontravam suas raíces, daí seguir pulando de galho em galho...]

Flagra o estado de perplexidade resultante do bombardeio de informações, contrapondo-lhe o descompromisso de caminhar "contra o vento, sem lenço, sem documento". Ficou em 4º lugar.

"Domingo no Parque" é uma música descritiva, propondo imagens cinematográficas e nada mais. Gil, aliás, já fizera coisa semelhante em "Água de Meninos". O que ela teve de tropicalista foram as guitarras elétricas dos Mutantes.

Numa total inversão de valores, o júri atribuiu-lhe a 2ª colocação, à frente da incomparavelmente superior "Alegria, alegria".

A vitória coube a "Ponteio", de Edu Lobo e Capinam, um dos temas da trilha musical do filme A Vida Provisória, de Maurício Gomes Leite.
"Água de Meninos": quase um rascunho da "Domingo no Parque".
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Metafórica (a viola a cujo ponteio os versos aludem é a metralhadora guerrilheira), correta, com ótimo arranjo e as presenças simpáticas de Edu Lobo e Marília Medalha, foi a solução encontrada para não se premiar a sensação tropicalista; em termos criativos, não avançou um milímetro em relação ao que já se fazia.

Em 3º lugar, Chico Buarque com "Roda Viva", composta para a peça homônima (aquela cuja encenação foi vandalizada por uma horda do CCC) e defendida pelo autor com o MPB-4.

No 5º, a xaroposa "Maria, carnaval e cinzas", de Luís Carlos Paraná, por Roberto Carlos e O Grupo.

Como melhor letra, prêmio merecidíssimo para "A Estrada e o Violeiro", do precocemente falecido Sidney Muller.
Que letrista superlativo perdemos com a morte precoce de Sidney Muller!

Finalmente, uma última palavrinha sobre o cadê a música que estava aqui? O gato comeu ou o fósforo queimou? 

É realmente muito estranho que este seja o festival do qual se conservaram mais e melhores gravações, com a única exceção de "Ventania", de Geraldo Vandré, cujo sumiço pode ter sido imposição dos militares, mas também uma mera pirraça dos mandachuvas da TV Record (vide aqui).

Assim como é estranho somente eu haver percebido a omissão e escrito sobre ela. Parece que os críticos musicais se tornaram politicamente corretos desde criancinhas, não se incomodando com o boicote de ontem e de hoje a um grande artista que o autoritarismo destruiu, mesmo sem o matar.
Este é o vídeo salvo do incêndio que a TV Record restaurou e exibiu

2 comentários:

Unknown disse...

Perfeito. Um resumo bastante interessante, consistente e respeitável sob um ponto de vista de quem viveu viveu intensamente no olho do furacão aquela pesada conjuntura política, onde a música tinha uma real " força de expressão" . Parabéns Lungaretti.

celsolungaretti disse...

Obrigado, Domingos.

Eu realmente acompanhei com muito interesse os grandes festivais de MPB e toda semana assistia ao FINO DA BOSSA. Não me dava conta de que música, cinema e teatro com aquela qualidade era algo tão circunstancial que eu passaria o resto da vida torcendo em vão para que a moeda caísse em pé de novo.

E, conforme a idade avança, diminuem minhas esperanças de ainda ver a verdadeira arte renascer das cinzas. Está cada dia mais mercantilizada.

Meu consolo é que, como disse o Gilberto Gil, "quem não dormiu no sleeping bag, nem sequer sonhou".

Um forte abraço!


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