quinta-feira, 27 de julho de 2017

A AUTOCRÍTICA É REVOLUCIONÁRIA

“Que classe de mundo é este que pode mandar máquinas
a Marte e não faz nada para deter o assassinato
do ser humano?” (José Saramago)
.
Sempre considerei que o maior compromisso de um revolucionário emancipacionista é a busca reiterada da emancipação social diante de qualquer tropeço. 

Neste sentido, podemos nos enganar no curso de tal busca, mas, uma vez percebido o engano, jamais podemos podemos aceitá-lo em razão de acomodação vaidosa ou interesses menos nobres. 

Quando nos esquivamos de fazer autocrítica, não enfrentando os nossos erros, deixamos de ser revolucionários, igualando-nos aos conservadores que priorizam os próprios interesses em detrimento do bem comum.

Não podemos obrigar o pensamento conservador (insensível à debacle ora se agrava, já que infenso à dor e à miséria humanas) a compreender as causas do infortúnio social e a fazer autocrítica; mas podemos e devemos demonstrar quão prejudicial a todos é a irracionalidade do nosso modo atual de viver social, inclusive para os próprios conservadores: eles pagam um preço alto pela obtenção e manutenção dos seus privilégios mesquinhos, sob a forma de decomposição moral e vida temerária.
"Jamais podemos aceitar o engano, uma vez conhecido" 

Sempre se disse que um exemplo é mais forte do que mil palavras; as ações de um revolucionário emancipacionista têm de ser os maiores testemunhos do conteúdo do seu pensamento, devendo estar sempre consentâneas com o melhor ideal de realização de justiça. 

A corroboração de uma injustiça em nome da pretensa realização de uma justiça maior representa o fim justificando os meios e este é o caminho mais curto para a desmoralização e desvirtuamento de qualquer postura que se reivindique revolucionária.  

Marx fez uma autocrítica implícita e explícita do seu pensamento original. Implícita em razão do conteúdo a partir da sua crítica da economia política; e explícita quando disse que não era marxista, referindo-se a seus postulados iniciais.  

Ora, se o pai da matéria assim procedeu, por que desconhecermos a teoria marxiana da crítica do valor enquanto revolucionários diante do modo decadente de produção capitalista (e, ainda, por que continuarmos considerando os postulados do movimento operário enquanto tal como pretensamente marxista)? Está claro que a esquerda tem de conhecer o Marx esotérico da crítica do valor, sob pena de se tornar falsária em relação ao próprio teórico do qual diz ser seguidora.    

A crítica à forma-valor implica, necessariamente, a negação de todos os construtos em seu derredor. Isto significa que não podemos e nem devemos tentar destruí-lo por dentro, ou seja, competindo no interior da sua institucionalidade para negá-la, sem abrir mão dos recursos institucionais e financeiros que tal postura proporciona.  
O espetáculo mais aguardado da presente década
Tal ambivalência acaba somente ratificando o status quo dominante contra o qual se se pretende insurgir. Em nenhuma época histórica, seja no país que for, a participação institucional possibilitou transformações transcendentais. 

Os primeiros cristãos – aqueles que, perseguidos, se reuniam nas catacumbas e usavam códigos de comunicação de identificação com os seus pares (como o desenho de um peixe) fugindo da perseguição institucionalizada para a defesa e propagação de suas posturas revolucionárias diante do escravismo e poder militar romano  conseguiram ampliar o movimento e obter a força revolucionária necessária até serem cooptados pelo poder institucional romano (século III da era cristã). Aí tudo se acomodou e foi esvaziada a força do seu pensamento revolucionário.

A institucionalidade burguesa é forte como linha auxiliar do caráter onívoro da forma de relação social capitalista; então, as forças de esquerda que julgam poder solapá-la por dentro apenas se tornam legitimadoras da opressão contida na sua democracia.

Vivemos uma era de sangue e barbárie. E o mais absurdo é estarmos a ela nos adaptando, como se fosse uma fase inevitável, com a qual pudéssemos, de alguma maneira, conviver. 

No Brasil a vida humana está valendo pouco. A guerra urbana toma ares de selvageria, na qual os ingredientes do tráfico de drogas e ações do crime organizado são cada vez mais presentes, dando ordens de comportamentos sociais em muitas localidades: ditam para as comunidades o que fazer; como fazer; e a que horas fazer.
O poder real em muitas comunidades carentes é o tráfico

Com o Estado se mostrando cada vez mais impotente para conter a onda de crimes, o capitalismo e sua institucionalidade decadente ocupam o noticiário com informes que evidenciam sua verdadeira face obscura e sua falência.  

E o que a oposição pretensamente anticapitalista propõe para o combate a tal estado de coisas? Empunha velhas bandeiras esfarrapadas que, em última análise, apenas reivindicam a humanização do capitalismo sob a cantilena de mais empregos e manutenção de direitos trabalhistas (mais capitalismo, em suma). 

Quer consertar o mal com o próprio mal, evidenciando o completo desconhecimento do significado da manutenção do sistema produtor de mercadorias e respectiva entourage decadente, aí incluída uma visão estatizante ultrapassada.        

O pensamento conservador (pretensamente oposicionista) de esquerda quer o Estado, mas nega a cobrança de impostos abusivos, com se existisse imposto bonzinho;
— quer mais emprego, ou seja, mais trabalho abstrato, mas sua retórica nega a acumulação capitalista, como se esta não fosse uma consequência da existência do trabalho abstrato e dos empregos;
— diz não à reforma trabalhista como forma de manutenção do status quo desses direitos, ao invés de negar tal reforma e o próprio direito do trabalho como tal, pois, afinal, o trabalho é uma categoria capitalista;
— combate práticas usurárias do mercado mas não postula a sua superação existencial, razão pela qual, nos exemplos históricos marxista-leninistas de economias estatizantes, o mercado sempre esteve presente;
— afirma a democracia como sacrossanto postulado universal, omitindo que a própria democracia é um instrumento de enganação coletiva, condição que se perpetua desde o seu surgimento na Grécia antiga, quando somente os demos (uma casta social não escrava) podiam participar da decisão dos destinos sociais;
— quer a conservação dos direitos previdenciários que somente podem existir a partir da produção do valor abstrato que os sustenta, mas discursa contra a usura capitalista da qual se extrai a contribuição previdenciária pelos trabalhadores;
— quer serviços públicos eficientes e mais presença do Estado, sem admitir que tal reivindicação significa a manutenção da esfera de regulação e manutenção da opressão institucional capitalista (o Estado); 
— defende uma maior participação de segmentos de trabalhadores e mulheres no parlamento e nos órgãos do poder Executivo, sem compreender que tal participação representa a afirmação daquilo que dá sustentação e legitimação a todo o direito e administração da ordem legal e administrativa opressora do Estado, a serviço do capital. 

Basta!
Façamos a autocrítica corajosa das nossas ações e equívocos históricos, decorrentes da ignorância científica dos mecanismos sociais vigentes, tomando então o rumo da emancipação social, que clama por ações conscientes e eficazes. 

A autocrítica é revolucionária. (por Dalton Rosado)

Um comentário:

Ana Carolina disse...

Engraçado como no meio da esquerda (e falo de dentro dele) quando sugerimos autocrítica e tentamos mostrar sua necessidade somos muito e severamente criticados.

Obrigada por esse texto maravilhoso e por me mostrar que não sou a única que pensa assim!

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