segunda-feira, 25 de julho de 2016

APOLLO NATALI: "MEUS 80 ANOS DE VILA RÉ".

"Ah, vó, ainda quero pão amolecido com água, tomate, sal e vinagre!"
Vila Ré é o nome do bairro de subúrbio onde moro, na zona Leste paulistana. A palavra  é o sobrenome dos fundadores do bairro. Em latim, quando o termo re é usado em poesia, significa rei. Quando usado em sentido comum quer dizer coisa. República = coisa pública.

Quando eu era menino, tinha trem de verdade, puxado pela Maria Fumaça. Ia gente no telhado e em cima da lenha da locomotiva. Tempos livres aqueles. Viajava-se de janelas abertas nos vagões de madeira e muitos iam no trem sem pagar. O preço da passagem não aumentava nunca. Meu avô, um italiano nascido em Valelung, na Sicília, batalhador, um dia me fez um carinho no vagão lotado. A barba dura me machucou o rosto.

Era tudo mato. Às cinco horas da tarde todo mundo se recolhia. Dava medo o escurecer sem ninguém.
"Tinha trem de verdade, puxado pela Maria Fumaça"
O nome Vila Ré se consolidou mesmo devido à chácara de João Ré, um dos pioneiros. Ele era filho de Giácomo Ré, o primeiro a pôr os pés naquelas terras ainda sem ninguém. 

Era 1895. Giácomo, que tinha um restaurante no Largo do Tesouro, em São Paulo, comprou 90 hectares para engorda de gado entre a ferrovia da antiga Central do Brasil e o córrego Tanquinho, no Burgo Paulista. Depois a área foi dividida em chácaras e, mais para a frente, em lotes pequenos. 

Ruas marcadas com os nomes dos pioneiros foram a Balbina Ré, Augusto Ré, Laura Ré. Pioneiros também foram Galileu Menon, José Cirillo, meu avô. Depois mudaram tudo sem consultarem o povo e rebatizaram as ruas com nomes que ninguém conhece.

Havia o riozinho de águas transparentes cheias de lambari, onde meu pai me ensinou a nadar. Ainda o vejo, de calção comprido mergulhando na pontinha, nas margens do poção, onde era mais largo e mais fundo. As árvores precisavam de seis homens para abraçar. O clima era de montanha.

A Vila Ré não tem praças, nem jardins, nem árvores. Conhecem algum bairro assim? Mudaram também o nome da rua Bijou, onde meu avô tinha a chácara. Agora é o nome de um árabe. Pode ter sido um grande homem, mas não tem nada a ver com a história do bairro.
Na rua Itinguçu ficava o cine Saturno, que o vento levou...

Não tenho fotos da chácara do meu avô. A única que guardo está na minha lembrança: a porteira com o coqueiro alto, a casa rústica, o caramanchão, o galinheiro no fundo e árvores balançando com o vento forte, goiaba, pera, pêssego, caqui, romã, maçã, uva, abacate.

E tinha minha avó. Cozinhava no fogão à lenha, rodeada pela criação, galinhas, porcos, cachorros, gatos.

"Posso pegar uma pera, vó?" "Sim, filho, pode." Enrosquei-me naqueles galhos muito juntos e colhi, ainda criança, para sempre, a pera e a mansidão da minha vó. 

Meu avô era carregador de malas do norte,  ou seja, da estação do Norte, que é a atual Estação Roosevelt, no Brás. 

Era ainda a Estrada de Ferro Central do Brasil. Meu avô era conhecido como o 26, o leão do Norte, com sua voz de trovão. Era também o número da chácara, rua Bijou, 26. O endereço da minha infância.
Hoje a Vila Ré demole o seu passado...

Em sonhos, hoje, colho grandes frutos maduros da chácara, que não me saciam. Lá está o caramanchão, sob a videira, o garrafão de vinho ao pé direito do meu avô nos ruidosos almoços com a parentada toda.  O poço, com sarilho de ferro. O forno, no qual às vezes, no lugar do pão, tinha bichos e até cobras. Uma vez um vespeiro me perseguiu.

A casa, que foi vendida, ainda está lá. Conta minha mãe que eu ia cambaleando, gordinho, um ano e alguns meses de vida, pinto de fora, atravessava a rua de terra, enfiava pelo portão da chácara e subia no colo da minha avó. Ela ria e me dava pão amolecido com água, tomate, óleo, sal e vinagre.

Os enterros iam a pé até a Penha. A avenida asfaltada de hoje, a rua Itinguçu, era de cascalho, com fileiras de árvores dos lados. Cheguei a ver isso, na adolescência. Agora tem trânsito, oficinas, lojas, motéis.

Sonho com o meu riozinho de água fria no Burgo Paulista, o córrego Tanquinho, encostado à Vila Ré. Chego na chácara no meu sonho e me atiro nos braços da minha avó. E choro, um choro sentido, fundo, que vem do estômago. Ah, vó, ainda quero pão amolecido com água, tomate, sal e vinagre!

...e assume o visual de modernidade.
Minha avó foi levada morta pelo corredor da chácara, caixão roxo. Tzi Terê, velha amiga desde a Itália, choramingava"Está orgulhosa, não é? Vai com Jesus, não é?". O assunto da minha avó era Jesus.

O colchão era de palha e a gente fazia barulho se mexendo na cama. O armário tinha cheiro de pão. Na mesa tosca, o despertador, o lampião e a Bíblia. Minha avó lia para mim com pince nez. Noite após noite, a cavalaria do povo de Deus marchava por aquela mesa. Os anjos tocavam trombeta em cima da fumaça do lampião, enquanto os pecadores eram destruídos em meio a cenários de fim do mundo.

Eu sabia, eu sabia, que aquele despertador barulhento estava marcando o tempo muito depressa. Minha avó morreu, meu avô se foi depois, a chácara acabou loteada –  todos precisam viver e morar – e eu deixei de ser menino.

3 comentários:

Luiza disse...

Adorei seu post, muito emocionante sua história, Parabéns.

Unknown disse...

São linda suas lembranças, fiquei imaginando cada cena e lembrando da minha vó.

celsolungaretti disse...

Anônimo,

infelizmente o Apollo morreu no último dia 31 de julho, aos 82 anos.

Desde então, o blog está republicando as melhores crônicas dele, sempre às terças-feiras.

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