terça-feira, 7 de junho de 2016

REFLEXÕES SOBRE A DEMOCRACIA E A REFUNDAÇÃO DA ESQUERDA

A ideia de uma refundação da esquerda permanece um pouco vaga; e é natural que seja assim. 

Temos vivido tempo suficiente para testemunhar momentos da História tão expressivos quanto diferentes entre si, e, certamente, ficamos diante da necessidade de assumir alguns conceitos para o dia de hoje —conceitos propriamente políticos. E sem nada de muito definitivo neste momento, porque temos de rever muita coisa. 

Democracia, por exemplo. Democracia tem se relacionado a um conjunto de dados e conjecturas ainda mais problemático que capitalismo, e assim temos visto toda a movimentação na Ásia, na África, na Europa e nas Américas de 2011 em diante. É possível afirmarmos que os processos de revolução política, derrotados ou deteriorados quase todos nesses últimos anos (veja-se o caso da chamada primavera árabe), estabelecem a realidade de que, assim como existe uma crise estrutural do capital, existe uma crise estrutural da política, muito específica, isto é, própria da política. Esta é a opinião do húngaro István Mészáros. 

Outro homem do leste europeu, o polonês Zygmunt Bauman, imaginou que poderia ser esta a abertura de uma versão do Manifesto Comunista para os dias atuais: “Um fantasma ronda o mundo; é o fantasma da indignação”.

Temos a tendência, hoje, de assumir que democracia é um valor universal, talvez sem nos darmos conta de quão estranha seria a possibilidade de haver, em se tratando de política, alguma ideia realmente universal. 
China: o imponente Congresso Nacional do Povo.

Que tal observarmos algumas experiências de sociedade, avaliando se são democráticas ou não? É um exercício interessante.

A República Popular da China, por exemplo, é democrática? Segundo um ponto de vista, é, sim. Lá, eles têm uma forma de auditoria pública sobre os negócios do estado, que qualquer um pode acompanhar consoante as normas do Congresso do Povo, e mediante a participação dos nove partidos políticos existentes no país, num amplo conclave chamado Conferência Política Consultiva do Povo Chinês. 

Os encargos governamentais são examinados conforme o orçamento votado pelos 3 mil deputados da China para o período de um ano, de acordo com o Tesouro nacional e a etapa do plano de desenvolvimento definido a cada cinco anos, os planos quinquenais. 

Algumas das regiões mais desenvolvidas, como a de Xangai, ou a de Pequim, entre outras, provêm ao chinês médio uma qualidade de vida crescentemente melhor, ao implementar tecnologias para a revitalização das cidades sem desperdício de água, comida e energia elétrica, até mesmo com experimentos para a distribuição de energia a custo zero ou perto disso, de maneira que o direito democrático ao uso da cidade encontra-se potencializado. 

Acham-se na China as melhores escolas públicas do mundo, com o país investindo em educação módicos 3,6% do seu PIB! 
Entretanto, a liberdade de expressão e mobilização é muitíssimo restringida, o sindicalismo independente ainda é fraco, os meios de comunicação são censurados ou diretamente controlados, existe uma polícia secreta, pronta a dar uma esfrega em Chico e em Francisco, como toda e qualquer polícia secreta (com todos os seus rigores e terrores), essas coisas.

Poderíamos estender uma consideração assim tão curta, parcial, a outros países; será algo muito instrutivo se nos dedicarmos antes a reunir dados, digamos sobre a Rússia, ou Israel, ou o Líbano, ou o Irã, ou os EUA, ou o Japão, ou os nossos países latino-americanos.

Parto do princípio de que a democracia não é um valor universal, a menos que cada um dos povos ao redor da Terra proclame-a como um princípio e um objetivo. Podemos e devemos nos solidarizar com os povos que lutam por democracia, mas não podemos cair no ridículo de dizer ao outros povos o que devem almejar, nem o que devem entender por democracia. Façamos isto por nós mesmos, em relação a nós mesmos, e já estaremos contribuindo muitíssimo com a transformação do mundo.

No nosso caso, podemos dar início a uma consideração do problema, que leve em conta a questão da democracia, sempre contraditória, partindo de alguns pontos. Se chegarmos com isto a realizar uma reflexão, interessante, pelo menos um pouco renovadora, sairemos ganhando. Vejamos:
1. Nós, brasileiros, gostamos de democracia. Gostamos de certa desenvoltura que um regime democrático costuma proporcionar, não gostamos de ser impedidos de falar (ao contrário, adoramos discorrer até mesmo sobre aquilo que não entendemos), e gostamos de nos reunir na rua, inclusive para protestar por algum motivo; 
2. Nós, brasileiros, não gostamos de democracia, porque, em termos políticos, não gostamos de responsabilidade. Ignoramos o que se passa na Câmara de Vereadores, não vamos às reuniões na escola dos nossos filhos, não nos filiamos à nossa entidade profissional e nem procuramos saber de que se trata, não nos sentimos impelidos a saber quem são os candidatos aos cargos eletivos e que significado têm suas linhas políticas, e nem queremos votar, p. ex., em diretor de escola pública. Nós queremos dar o dinheiro dos impostos, e receber os serviços, sem aborrecimentos e, principalmente, sem maiores esforços. Exortar o brasileiro médio ao esforço intelectual, então, equivale a insultar-lhe a mãe; 
3.  Nós, brasileiros, gostamos de democracia. Gostamos da ideia de uma comunicação livre, em larga escala, sem a vigilância de algum órgão governamental. E é preciso dar toda liberdade aos dispositivos de comunicação cujo prestígio é crescente (redes sociais, como se só existisse isso na internet), e que servem para a circulação de bens e serviços além de servirem para enviar links, mensagens e arquivos;  
4. Nós, brasileiros, não gostamos de democracia, porque somos partidários da ideia do privilégio. Habituamo-nos nas últimas décadas à ideia de que o consumo desenfreado seria uma maneira de viver a plenitude do nosso sistema econômico e social, sem que a imensa desigualdade entre os ricos, os pobres e paupérrimos fosse um problema. Se a nova geração de consumistas inveterados, endividados até as orelhas e finalmente arruinados, pudesse aplicar o sabe-com-quem-está-falando tão rápido quanto quem passa o cartão de crédito, ela o faria. Consumir loucamente e dar carteirada são sempre formas de obter distinção; 
5. Nós, brasileiros, gostamos de democracia porque adquirimos a ideia errada, perniciosa, de que democracia não custa nada; 
6. Nós, brasileiros, não gostamos de democracia porque repudiamos a ideia de mérito. Nós repudiamos o talento, a excelência, a inventividade, e até mesmo o brilho nas palavras e no olhar de um gênio, quando temos a rara oportunidade de estar diante de um. Preferimos mentir para nós mesmos, dizendo que os alunos do Fundamental 2, p. ex., não estão preparados para serem reprovados caso sejam incompetentes, indolentes ou irresponsáveis. Basta fazerem o esforço extraordinário de irem às aulas e responderem quando o professor chamar-lhes o nome, e serão aprovados. Qualquer hora dessas alguém vai ficar traumatizado por responder à chamada. 
7. Nós, brasileiros, gostamos de democracia porque almejamos um Estado de Direito, sabendo perfeitamente que o Estado de Direito atual é tão precário que chega a ser inexistente. A violência policial que recai injustamente sobre as periferias, p. ex., pesa sobre pessoas que não têm a quem recorrer. 
8. Nós, brasileiros, não gostamos de democracia porque nunca fomos formados para tal. Muito poucos, entre nós, chegam a compreender o significado da palavra democracia.
Democracia não é um valor universal, mas queremos e precisamos que seja um valor nosso, sobre o qual possamos nos responsabilizar e trabalhar constantemente. 

A refundação da esquerda no Brasil exigirá formação política num nível nunca antes visto, nem sequer imaginado. 

Pode parecer uma constatação óbvia, mas é a primeira coisa que precisamos ter em mente.  (por Eduardo Rodrigues Vianna)

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