quinta-feira, 17 de abril de 2014

CABEÇA DE PAPEL

Passada a fase da tortura propriamente dita --que para mim coincidiu com a de incomunicabilidade, fiquei sem receber visita de parente ou de advogado, sem sequer a certeza de que não seria assassinado, até o 75º dia de prisão--, começava a de outra tortura, esta involuntária, que os militares infligiam a nós, presos políticos: a de termos de  suportar seu exibicionismo pueril.

Levando uma rotina tediosa, velhos sargentos adoravam ter ouvintes compulsórios de seus  causos  e bravatas.

Éramos obrigados a escutá-los sem manifestar desagrado, sob pena de sermos privados de pequenas mercês, como um reforço no  bandejão  para recuperarmos os muitos quilos perdidos na etapa da pancadaria, da qual saíamos bem mais magros do que entráramos [meus pais ficaram horrorizados quando me visitaram pela primeira vez, anos depois me contaram que eu parecia um daqueles prisioneiros esqueléticos dos campos de concentração nazistas...].

Na Polícia do Exército da Vila Militar (RJ), cansei de escutar o relato das indignidades a que eles haviam submetido Caetano Veloso e Gilberto Gil. Não lhes perdoavam a fragilidade, comparada ao comportamento mais firme dos militantes. E se orgulhavam, p. ex., de terem arrancado lágrimas de um deles ao tosar-lhe a cabeleira, por pura maldade.

Tal machismo de colegiais, aliás, também se evidenciou nas constantes zombarias e insultos de que era alvo, na PE de São Paulo, um sargento de ascendência nipônica, encarcerado por covardia diante do inimigo.

O pobre coitado transportava víveres para as tropas durante a Operação Registro --o cerco do qual o comandante Carlos Lamarca escapou à frente de um pequeno grupo de companheiros que treinavam guerrilha, em abril de 1970--, quando foi dominado pelos fugitivos.

O resto o sargento Kondo me contou quando não havia oficiais o azucrinando:
"Eu estava só com  recos  [recrutas] inexperientes. Eles nos renderam e obrigaram a transportá-los, no nosso caminhão, para fora do cerco. Disseram que nos matariam se não colaborássemos. Então, passamos as barreiras calados, sim. E por isso estou aqui vivo. É melhor aguentar ofensas do que morrer".
Quem o colocou na berlinda, espalhando aos quatro ventos que Lamarca só escapara por culpa dele, foi o repulsivo coronel Erasmo Dias. Os que o vinham atormentar, atiravam-lhe na cara: "Vergonha da farda!". 

Acabou servindo, claro, como o principal bode expiatório do fracasso da operação que mobilizou inutilmente milhares de militares. Se bem me lembro, ficou preso por algum tempo e depois foi expulso do Exército.

Mas, tudo isto foi introdução, para os leitores perceberem as circunstâncias em que ouvi um relato terrível, que até hoje não sei se foi  papo furado  ou se referia a um acontecimento verídico.

Aconteceu de uma patrulha militar surpreender, à noite, um estuprador de menor em ação. Foi levado ao quartel e deveria, evidentemente, ser entregue às autoridades civis.

O oficial que estava de guarda, entretanto, preferiu outra solução.

Mandou que batessem no detido com palmatória, na sola do pé; que o forçassem a correr; e foram repetindo esse tratamento até ele não aguentar nem andar e ter de ser arrastado pelos soldados.

Só então o encaminharam à delegacia. E, claro, os policiais não registraram em lugar nenhum as condições deploráveis em que receberam o prisioneiro. O Exército era todo poderoso.

Isto teria causado a gangrena e morte do estuprador, exatamente como o oficial previra.

Nunca consegui esclarecer se é ou não possível assassinar-se alguém desta maneira. Mas, o  sargentão  contou essa história para seus subalternos aparentando sinceridade e mostrando admiração pelo superior que teria dado a ordem macabra. Eu só escutei, enojado.

Talvez os leitores com conhecimentos de medicina possam lançar algumas luzes.

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