domingo, 15 de janeiro de 2012

DEUSES DO ESPORTE

Hoje é um domingo daqueles que inspiraram os versos de Gilberto Gil, "O jornal de manhã chega cedo/ Mas não traz o que eu quero saber/ As notícias que leio conheço/ Já sabia antes mesmo de ler" (Domingou).

Jornalões e revistonas valorizam assuntos menores durante meses mortos como janeiro, porque, para eles, o importante é preencher espaços.

Não é o meu caso. Então, à falta de algo realmente palpitante, prefiro reeditar um bom texto do passado. 

Como este que escrevi há quase um ano e tem agora a serventia adicional de servir como tributo a Muhammad Ali, um dos maiores ícones da minha geração, que completará 70 anos depois de amanhã.

DEUSES DO ESPORTE

Com uma vitória magnífica no Aberto da Austrália, Roger Federer confirmou sua condição de maior tenista de todos os tempos.

E daí, perguntarão os leitores deste blogue, acostumados a nele encontrarem, principalmente, abordagens políticas?

No meu caso, a paixão por alguns esportes antecedeu qualquer juízo político ou ideológico, então não tenho justificativas óbvias para dar.

Por exemplo, sou corinthiano, torcedor do time do povo. Mas, a opção futebolística veio quando, aos quatro anos de idade, moleques da rua me perguntaram para qual time torcia e eu não sabia o que responder, por que isso nunca me interessara.

Mas, é uma idade em que não queremos ficar em desvantagem aos olhos alheios. Então, disse "Corinthians", porque era o time do meu pai. E Corinthians ficou.

Mais tarde, percebi ter feito a escolha certa. Provavelmente por ter sido o primeiro grande paulista a admitir negros no seu elenco, os miseráveis e excluídos adotaram o Corinthians como seu representante mítico.

Assim, tem como símbolo mais frequente o mosqueteiro, um herói das classes baixas lutando contra os poderosos da corte para fazer prevalecer a verdadeira justiça.

Mas, a idade foi mudando meu olhar para o mundo. Até 1977, eu era como qualquer torcedor fanático, querendo que, a qualquer preço, o Corinthians fosse campeão, pois não conquistava esse título desde 1954.

O fim do jejum me libertou para apreciar o futebol mais como beleza. Principalmente porque o Corinthians passou a dar exibições primorosas da arte futebolística, com a dupla Sócrates/Palhinha em 1979 e com o inesquecível time da democracia corinthiana em 1982 e 1983.

Foi também a época da extraordinária Seleção Brasileira do Mundial de 1982, com os foras-de-série Falcão, Zico e Sócrates na zona de raciocínio, produzindo seus lampejos fulgurantes.

Era como ter Cruyff desdobrado em três, regendo uma orquestra que produzia sonoridades sublimes (mas, às vezes, desafinava por causa da indefinição quanto a quem realmente eram os solistas...).

Foi a derrota mais sofrida de quantas amarguei no futebol. Eu trocaria dez conquistas insossas como a de 1994 pela vitória do futebol-arte em 1982.

E os esportes individuais?

Afora o futebol, único esporte coletivo que sempre me atraiu (a outros, como o vôlei e o basquete, eu só assisto nos grandes momentos), acompanhei com atenção o boxe e o xadrez, no passado; e até hoje me ligo no automobilismo e no tênis.

Refletindo um pouco sobre essas paixões, percebi que os quatro têm em comum colocarem o indivíduo diante de desafios extremos, andando no fio da navalha. São esportes em que só é grande quem alia uma vontade sobre-humana a um autocontrole inacessível aos comuns mortais.

No boxe, todos lembram a técnica refinadíssima de um Muhammad Ali, mas ele era muito mais do que isso. Tinha dons de grande estrategista, era como se combinasse os papéis de pugilista e de técnico.

Foi assim que ele venceu o invencível George Foreman, na maior luta de todos os tempos. Boxeou francamente contra ele no primeiro assalto e percebeu que jamais conseguiria a vitória lutando de igual para igual. A força descomunal do lutador mais jovem prevaleceria.

Então, adotou a postura que qualquer pugilista comum consideraria suicida diante da enorme potência dos golpes de Foreman: deixou-se ficar encostado nas cordas, recebendo o bombardeio e aparando-o com sua guarda.

Alguns obuses atingiam o alvo de raspão, outros se chocavam com os braços de Ali. Nenhum o abalou de verdade. E Foreman, acostumado a nocautes rápidos, foi se cansando.

No quinto assalto, o Ali aparentemente apático, que só se defendia, mostrou que era, isto sim, um tigre se preparando para dar o bote: com um contra-ataque fulminante, quase nocauteou Foreman.

Depois de mais dois rounds letárgicos, foi o que acabou acontecendo. Ali novamente surpreendeu Foreman e, com uma sequência de golpes cuja rapidez era inimaginável àquela altura de uma luta tão exaustiva, metralhou a cabeça de Foreman até fazer o gigante desabar em câmara lenta no ringue.

A coragem que deu a vitória a Ali nessa luta foi a mesma que o manteve no ringue até o fim de uma luta na qual teve seu maxilar fraturado no 2º round, contra Ken Norton.

O castigo que recebeu de Foreman foi tão terrível que, depois da vitória consumada, ele teve até um breve desmaio (que poucos perceberam) durante as comemorações. Até então, entretanto, a adrenalina o mativera em pé.

No xadrez também a pressão moral que um campeão suporta é devastadora, tendo de refletir sobre infinitas combinações enquanto o relógio o acossa.

É simplesmente inacreditável que o jovem desafiante Garry Kasparov tenha aguentado umas 20 partidas contra o campeão Anapoly Karpov, com 5x1 contra e dependendo só de uma derrota mais para perder o match, sem cometer falha nenhuma.

Forçou empate após empate, até que foi o veterano quem desabou: perdeu duas vezes seguidas e perderia as três restantes, se o match não tivesse sido anulado por "desumanidade" das regras (exigiam seis vitórias, pouco importando quantas partidas fossem necessárias para um deles alcançar tal total).

O socorro suspeito do presidente filipino da Federação Internacional de Xadrez não mudou o que já se decidira no tabuleiro. A coroa pertencia a Kasparov, que cumprira seu rito de passagem durante aquele torneio e dele saíra como homem e esportista superior: fulminou Karpov quando o match, zerado, foi disputado de novo.

No automobilismo, Schumacher não conquistou sete Mundiais de Fórmula 1 por acaso. Conseguiu aliar o senso estratégico de um Prost com o arrojo de um Senna (só o utilizando, entretanto, quando estritamente necessário, não se vexando em vencer corridas só na estratégia de troca de pneus, nas vezes em que isto bastava).

E Federer? Além de ser o mais completo tenista da História, "bom" ou "ótimo" em todos os fundamentos, ele foi capaz de reerguer-se depois que derrubado do pedestal por Rafael Nadal. Acostumado ao predomínio absoluto, a emergência de um verdadeiro rival o desconcertou durante alguns meses, no segundo semestre de 2008.

Mas, nas férias de fim de ano, conseguiu colocar a cabeça em ordem; e encontrou ânimo para dar a volta por cima, vencendo o desafio de retomar sua coroa.

Para sua surpresa, acabou sendo bem mais fácil do que tudo levava a crer: na verdade, Nadal forçara a natureza para derrotar o titã. Exigira mais do seu corpo do que ele era capaz. Só assim, com muita transpiração, conseguira sobrepujar a inspiração de Federer.

O preço acabou sendo alto: depois de uma temporada consagradora, foi fulminado por uma contusão no joelho que comprometeu sua temporada passada e o atormenta até hoje.

E Federer, que sempre manteve o sacrifício exigido de seus músculos no limite do razoável, agora reina soberano e pulveriza todos os recordes, tal qual Schumacher.

Como todo ser humano, admiro quem me inspira. Várias vezes meu autocontrole foi testado no limite extremo e, levando em conta a diferente magnitude dos desafios enfrentados, creio não ter ficado tão atrás de Schumacher, Kasparov e Federer. Também já ganhei partidas que pareciam totalmente perdidas, nas batalhas da vida.

E tenho, confesso, uma satisfação um tanto egoísta em presenciar os feitos dos maiores de todos os tempos. Pois, é sempre frustrante termos de ouvir falarem maravilhas sobre grandes nomes do passado, como se nada acontecesse de relevante no presente que vivemos.

Não questiono nem duvido que Leônidas da Silva, Fangio, Joe Louis e Capablanca tenham sido esportistas grandiosos.

Mas, em vez de ficar venerando quem nem sequer conheci, aprecio mais ter visto Pelé, Schumacher e Muhammad Ali superarem nitidamente os três primeiros; e saber que Kasparov, no mínimo, merece figurar ao lado do quarto, no panteão dos deuses do esporte.

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